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07 de Outubro de 2010

Artigo - Famílias Homoafetivas - Por Rodrigo da Cunha Pereira

Ao tornarem pública a celebração de seu casamento, Adriana Calcanhoto e Suzana de Moraes colocaram suas imagens de celebridades a serviço da cidadania. Consciente ou inconscientemente, alguns artistas, além de contribuírem com sua arte, cumprem também um papel político de ajudar a instalar novos paradigmas éticos e morais, ainda que isto signifique a incômoda exposição de sua intimidade. Na medida em que pessoas que são referência em determinadas profissões emprestam sua vida privada para revelar comportamentos ainda à margem da aceitação social, estão contribuindo para a desestigmatização dessas relações. A publicidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo vai aos poucos tornando-as comuns e lhes dando o selo de legitimidade, legalidade e normalidade.

Embora não exista no Brasil casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, como já é lei na Argentina, Portugal, Espanha e tantos outros países, os tribunais brasileiros há muito tempo reconhecem tais uniões como entidade familiar, inclusive o direito de adotar filhos (como recentemente julgou o Superior Tribunal de Justiça). Também tem sido comum a realização de contratos e escrituras públicas selando as uniões homoafetivas, já que das relações de afeto decorrem conseqüências patrimoniais e a necessidade de deixar claras as regras de herança, partilha de bens, entre outras.

O STF (Supremo Tribunal Federal), sob a relatoria do Ministro Ayres Brito e da Ministra Hellen Grace, deve julgar em breve dois importantes processos (ADP 132 e ADIN 4277), que definirão se as relações entre pessoas do mesmo sexo podem ou não serem consideradas como família pelo Estado. Este será um julgamento histórico.

Apesar de alguns tribunais já julgarem essa realidade de famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo, mesmo assim é importante que o Estado, através de leis e jurisprudência absorvam estes costumes, retirando tais relações da marginalidade e incluindo-as no laço social. Afinal, o Direito é também um importante instrumento ideológico de inclusão ou exclusão do laço social, podendo legitimar ou não dependendo das concepções morais-sexuais - como foi até há pouquíssimo tempo com os filhos havidos fora do casamento, que eram considerados ilegítimos.

Ao Direito interessa a questão das relações homossexuais principalmente porque a elas está ligada a idéia de justiça. Não é justo que cidadãos cumpridores de suas obrigações legais, inclusive com o pagamento de tributos, continuem excluídos e alijados do reconhecimento e do direito de constituírem famílias apenas e tão somente porque têm uma preferência sexual diferente da maioria. Afinal, o que as escolhas e preferências sexuais têm a ver com a conduta ética dos sujeitos? É preciso romper com estes discursos morais estigmatizantes para que o Estado pare de expropriar cidadanias.

No Congresso Nacional, também deve ser votado no próximo mês o PL nº 2285/2007, mais conhecido como "Estatuto das Famílias, proposto pelo IBDFAM através do Deputado baiano Sergio Barradas Carneiro, sob a relatoria do Deputado gaúcho Eliseu Padilha". É inacreditável como a discussão deste assunto continua sendo tabu. Alguns parlamentares repudiam o reconhecimento de tais uniões com base no discurso religioso, outros por medo de não serem eleitos em razão da causa que defendem, ou mesmo pelo pavor de serem identificados como homossexual. Seja lá qual for o motivo, o certo é que assuntos da sexualidade ainda trazem a tona os fantasmas e desejos mais recalcados.

Qual a razão do medo de se aprovar leis que incluam as relações homoafetivas na categoria de família? Certamente este medo e horror está diretamente relacionado ao próprio desejo. À toda lei existe um desejo que se lhe contrapõe. Não desejar a mulher do próximo, não matar, não roubar só tornou-se lei jurídica e religiosa, porque certamente alguém deseja o contrário. Não aprovar leis que reconheçam e incluam todas as formas de família no laço social, inclusive as homoafetivas, significa não ter coragem de enfrentar os fantasmas da própria sexualidade, que geralmente vêem encobertos pelo discurso moral e religioso, muitas vezes a serviço da expropriação da cidadania.

Apesar de grande parte dos parlamentares brasileiros tratar o assunto da homossexualidade como tabu, e não como questão de cidadania e inclusão, os fatos sociais falam mais alto que a resistência e o preconceito. É nesse sentido que deve ser o julgamento no STF, aqui referido. Mas, independente do legislativo e do judiciário, ou, enquanto não se incluir relações homoafetivas na oficialidade do Estado, as adrianas e suzanas vão abrindo alas para a cidadania.

Autor: Rodrigo da Cunha Pereira é Advogado, em Belo Horizonte, Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, Doutor (UFPR) e Mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise e Autor do Livro Divórcio - teoria e Prática (Ed. GZ)