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30 de Março de 2011

Artigo - Sobre as Certidões de Inteiro Teor no RCPN - Por João Pedro Lamana Paiva

Há alguns registradores que, empreendendo um esforço para que seja possível uma compreensão sistemática do assunto que dá título a este artigo e invocando o disposto no inciso XXXIV do art. 5º da vigente Constituição, referem ser possível o fornecimento de certidões de inteiro teor, no Registro Civil de Pessoas Naturais, dispensada a necessária autorização judicial, no tocante a informações relativas ao próprio interessado, quando por este requeridas.

Pois essa visão parece-nos laborar em algum equívoco, já que esse dispositivo do inciso XXXIV, alínea "b", do art. 5º da Constituição Federal não é norma suficiente a definir como se deve dar o fornecimento de certidões de inteiro teor pelo Registrador Civil de Pessoas Naturais.

O referido dispositivo constitucional é uma típica norma principiológica (assim como é grande parte do elenco de normas do art. 5º), que apresenta, de forma ampla e inespecífica, um enunciado de direito, demandando regulação por normas infraconstitucionais, dada à miríade de situações por ela abarcadas.

O que essa norma faz - e essa é sua finalidade constitucional - é enunciar a existência do direito de os cidadãos obterem, perante os órgãos públicos, certidões para fins de prova sobre assunto de interesse pessoal.

Dessa forma, não há que imaginar que possa haver responsabilidade pessoal do Registrador ao negar a expedição de certidão de inteiro teor, ainda que solicitada pelo próprio interessado que figura no assento, pois não é o Registrador a autoridade competente para determinar o fornecimento desse documento em diversas situações, de acordo com as normas infraconstitucionais que regulam essa matéria específica. Ao receber o pedido ou a petição, deve o Registrador encaminhá-la à autoridade competente para o exame da conveniência e oportunidade de que o acesso à informação seja franqueada ao requerente.

Tenha-se bem presente que há toda uma preocupação, na legislação brasileira, relativamente ao sigilo dos registros relativos, por exemplo, à adoção. Tanto assim, que o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, nas disposições do caput de seu art. 47 e § 4º, impõe regra absoluta de sigilo, especialmente após a sua alteração pela Lei nº 12.010/2009, que, diferentemente do que dispunha o texto anterior, sequer cogita da possibilidade de acesso à certidão, ainda que com autorização judicial.

Também há disposições na Lei nº 6.015/73 a confortar a necessidade de manutenção de sigilo exigindo autorização judicial para que a informação venha a ser revelada, através da certidão fornecida, como são os casos previstos no art. 45 (legitimação) e no art. 95 (legitimações adotivas anteriores ao ECA).

Evidentemente que o dispositivo constitucional não estabelece que uma certidão de inteiro teor possa ser fornecida à pessoa que figura no assento, com dispensa de autorização judicial para tanto, quando exista lei regulamentadora que estabeleça sigilo ou exija tal autorização.

Há, também, um outro problema a partir do momento em que se ponha em prática uma praxe registral que exija do interessado autorização judicial somente quando no respectivo assento conste informação cujo sigilo se imponha. Estar-se-á, na verdade, terminando com o esforço de manter esse sigilo, pois, quando negado o fornecimento ao interessado e, sabendo-se que, mormente nas hipóteses de adoção, legitimação ou legitimação adotiva é que pode ser negada a pretensão do solicitante em obter diretamente no Ofício Registral a certidão, salvo se obtiver autorização judicial, restará evidente que no assento está consignada uma de tais situações, aniquilando ou pelo menos prejudicando gravemente a preservação do sigilo de tais informações.

Dessa forma, se a intenção da lei é redobrar o controle sobre a publicidade da adoção e de outros atos de semelhante natureza, restringindo o acesso o quanto mais possível ao conteúdo pleno do registro, no intuito de preservar seu sigilo em proveito do adotado ou do legitimado, obstando a revelação de uma verdade que lhe tenha sido socialmente ocultada, tudo isso passará a ser um esforço em vão, frente a essa maior liberalidade, instituída pelo registrador, para o acesso ao inteiro teor dos assentos de registro civil na forma como se imagina ter sido instituída pela alteração introduzida pelo Provimento nº 10/2009, ao alterar o texto da Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR), tal seja, de estar instituída a dispensa de autorização judicial para obtenção da certidão de inteiro teor quando o próprio requerente figura no assento requerido.

Tanto é assim que o próprio Parecer nº 159/2008 - MCMC/GE, de 1º.12.2008, da lavra da ilustre Juíza-Corregedora Maria Cláudia Cachapuz, converge no sentido desse entendimento, naquele momento que precedia à alteração realizada:
"Correta, portanto, toda e qualquer determinação que remete ao Poder Judiciário a análise de pedido de acesso a certidões que possam conter informações reservada (art. 125 e § 2º do art. 129 da CNNR). Não há como impor ao registrador que efetue esta ponderação desde logo, quando há apenas pedido de acesso sem a necessidade de qualquer motivação específica pelo requerente de documento arquivado em banco de dados público."

Daí porque a praxe mais protetiva àquele sigilo desejado relativamente às adoções e outros atos de restrita publicidade estaria em exigir, a toda a pretensão de acesso ao inteiro teor do respectivo registro, independentemente de quem seja o requerente, a necessária autorização judicial. Insistimos aqui que essa praxe é importante para o Registro Civil porque reforça o sigilo no âmbito do sistema ao igualizar o tratamento aos interessados na obtenção da integralidade de qualquer assentamento registral.

A interpretação do art. 82-A da CNNR, data venia, deve ser cuidadosamente realizada, especialmente depois que foi possível verificar dos motivos que determinaram essa alteração na CNNR por força do Provimento nº 10/2009, pois foram pontualmente referentes ao fornecimento de certidões de inteiro teor demandadas pelos descendentes de italianos emigrados para o Estado, visando à obtenção de cidadania italiana. Ora, sabe-se que na técnica legislativa, situações pontuais dentro de uma regra geral devem ser tratadas como disposições de exceção à regra geral não sendo conveniente procurar-se fazer a regra geral ter o elastério suficiente para que contemple uma situação particularmente atípica dentro dessa regra geral. Foi o que, parece-nos, ocorreu com essa alteração específica do texto da CNNR: ao invés de estabelecer-se uma regra especial, excepcionando aquela situação particularíssima, resolveu-se alterar a regra geral de modo que se adequasse àquela particularidade.

Vejamos a literalidade da disposição normativa ora em análise:
"Art. 82-A - O fornecimento de certidões do inteiro teor do registro ou de cópia de documentos concernentes ao fato, salvo quando referentes a dados nominativos pertencentes ao próprio requerente da informação, dependerá de autorização ou de requisição judicial, mediante decisão fundamentada, assegurados garantias, direitos e interesses relevantes da pessoa."
"Parágrafo único - Independe de autorização judicial o fornecimento de certidão de casamento de inteiro teor."

Ora, o que são dados nominativos? Não há, entre nós, definição normativa para essa expressão. No âmbito de nosso Direito essa expressão constitui conceito jurídico indeterminado no contexto de uma norma administrativa.

Entretanto, ainda que pela pobre literalidade da interpretação gramatical, podemos tentar aclarar seu significado. Dados nominativos são, pois, dados relativos ao nome. Na hipótese específica deste tema, parece evidente, é relativo ao nome2 da pessoa natural.

Temos, por outro lado, que o uso dessa expressão, no contexto da CNNR, foi inadequado, especialmente por inexistir acepção legal para ela. Entretanto, em normas estrangeiras (como é o caso de manifestação do Parlamento Europeu e de países da União Européia, que estão criando legislação específica para o sigilo de dados) há referência a expressões tais e também em doutrina nacional já se pode encontrar referências a elas, revelando o uso inadequado, mas, de qualquer forma, sinalizando a importância de que a legislação nacional venha a ser adequada nesse sentido:
"As informações existentes nos bancos de dados podem ser classificadas[35] em:

a)Dados nominativos: referem-se a alguma pessoa, física ou jurídica.
Subdividem-se em:

-Dados não-sensíveis: pertencem ao domínio público e são suscetíveis de apropriação por qualquer pessoa; em princípio podem ser armazenados e utilizados sem gerar danos ou riscos de danos. E.g.: nome, estado civil, domicílio, profissão, educação, filiação a grupos associativos, etc. Sua existência e veracidade devem ser controladas, pois representam informações circunstanciais da vida das pessoas em momentos determinados. O transcurso do tempo pode afetar a relação entre a informação registrada e a situação atual, tornando-o irreal e desconexo. Neste caso, potencialmente os dados não-sensíveis podem causar danos, devendo-se reconhecer a pessoa a quem os dados estão relacionados o direito de retificá-los, atualizá-los ou aclará-los.

-Dados sensíveis: ligados à esfera da privacidade. São dados que informam, por exemplo, o histórico clínico da pessoa e suas características genéticas, adesão à ideologias políticas, crenças religiosas, manias, traços da personalidade, vida sexual, histórico trabalhista, assuntos familiares, etc.

b) Dados não-nominativos: informações não relacionadas e não identificadas diretamente a algum individuo em particular e que podem ser objeto de apropriação sem qualquer tipo de restrição, salvo limitações decorrentes de leis específicas, como as normas protetivas de direito intelectual. E.g.: dados estatísticos, bibliográficos, eleitorais.

No que tange à privacidade, a apropriação, difusão ou utilização indevida dos dados não nominativos não atinge, via de regra, a órbita dos direitos da personalidade. Os dados nominativos não-sensíveis, com a exceção mencionada, raramente causam violações à vida privada. O problema maior reside nos dados nominativos sensíveis, por tratarem da esfera íntima das pessoas. São, por isso, os que merecem maior proteção. 3

Assim, temos a impressão de que a nova redação do art. 82-A da CNNR pretendeu estabelecer que as certidões de inteiro teor continuam dependentes de autorização judicial e que a expressão "salvo quando referentes a dados nominativos pertencentes ao próprio requerente da informação" destina-se a evitar que seja negado o fornecimento de certidões toda a vez que se tratar de registro decorrente de adoção ou outra situação que requeira sigilo, condicionando seu fornecimento à autorização judicial, quando o solicitante do documento não seja a própria pessoa que figura no termo de registro. Na realidade essa certidão contendo somente "dados nominativos (não-sensíveis)" é aquela ordinariamente expedida e entregue em balcão por solicitação de qualquer interessado.

Esse parece ser o alcance pretendido pela norma, mas que não está devidamente explicitado pelo texto que, aliás, termina por confundir o intérprete até mesmo quanto ao que seja uma certidão de inteiro teor, que é aquela que narra na integralidade e em minúcias as informações presentes no assento e aquelas a ele eventualmente agregadas, sem qualquer omissão de informações oriundas desse conjunto de dados (abrangendo, portanto, "dados nominativos" tanto sensíveis como não-sensíveis).

A impressão que temos é de que o dispositivo regulamentar restou com seu verdadeiro significado envolto em um manto de mistério... Certamente porque a norma não poderia ser tão liberalizante a ponto de prejudicar o sigilo dos registros que assim o exijam, nem tão restritiva a ponto de inviabilizar qualquer acesso a eles.

Um último aspecto relativo à introdução do art. 82-A na CNNR, diz com a inadequação da disposição de seu parágrafo único, que está a dispensar completamente a autorização judicial para a expedição de certidões de casamento de inteiro teor. Nesse aspecto não podemos desconhecer a realidade existente antes da vigência da Lei nº 8.560/92, vigorante desde 30.12.1992, que vedou a prática de legitimar e reconhecer filho na própria ata do casamento (art. 3º). Relativamente a essa situação e também levando em conta o disposto no art. 45 da LRP, verificamos que há confronto daquela disposição da CNNR com texto de lei vigente o que sugere que o Registrador Civil tenha bem presente esse aspecto e exija a autorização judicial quando verificar que o assento de casamento, lavrado antes de 30.12.1992, contempla aquela situação.

Outro problema relevante com o qual diariamente nos deparamos é aquele relativo ao fornecimento de certidões cujos assentos foram originalmente elaborados anteriormente à vigência da Constituição de 1988 e que estejam em confronto com as disposições de seu art. 227, § 6º (reprisado através do art. 1.596 do vigente Código Civil).

A referida disposição constitucional estabeleceu a absoluta igualdade entre os filhos, seja qual for a natureza do vínculo parental, assim como proibiu o uso de quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Evidente, pois, o sigilo imposto por essas normas àquelas expressões utilizadas nos assentos antigos, então autorizadas pela vigente legislação, tais como: "adulterino", "legítimo/ilegítimo", "legitimado", "adotivo", além de outros dados sensíveis que podem identificar tais caracterizações, como, por exemplo, a qualificação dos pais (casado, solteiro, separado, etc.), as quais não podem ser reproduzidas nas certidões atualmente fornecidas, ainda que presentes na lavratura do texto original dos assentos.

Daí a tormentosa questão: devem essas expressões e informações ser tidas como não escritas, ainda que a certidão seja de "inteiro teor"?

Evidentemente, para que uma certidão seja de inteiro teor, seu conteúdo deve reproduzir todas as informações tais como consignadas no assento original, já que legais na sua origem. Daí resulta que, dado ao sigilo imposto às informações que atentem contra a igualdade do vínculo de filiação, essas certidões de inteiro teor sejam fornecidas, tão-somente mediante autorização judicial, ainda que o requerente seja aquele a figurar no assento, pelas idênticas razões de coerência do sistema, como já referido.

Levando em conta que as certidões de inteiro teor podem ser extraídas por processo datilográfico, de digitação, de reprodução de microfilmes, de digitalização de imagens, de impressão a partir de banco de dados com software específico e até por cópia reprográfica do termo, tomada diretamente do livro de registro, a orientação deve ser a mesma, pois essas condições decorrem somente da praxe adotada pela Serventia Registral. Logo, a forma de produção do documento não altera o critério aplicável ao controle sobre o acesso às informações nele contidas, visando à preservação do sigilo imposto por lei.

Nesse sentido têm sido várias as manifestações jurídicas no sentido de que é adequada a exigibilidade da vênia judicial pelo Registrador, como, por exemplo, aquela proferida, em São Paulo, pela 2ª Vara dos Registros Públicos, nos autos do processo nº 100.09136301-5, em atenção à consulta apresentada pelo Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais do 3º Distrito da Capital4. Também importante referir, no mesmo sentido, o Parecer nº 141/2010-E, de 5.5.2010 (Processo nº 2009-30593), resultante de consulta da ARPEN-SP, aprovado em caráter normativo, pelo Corregedor-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, em 11.5.20105.

Assim, ainda que reconheça que esse tema é polêmico e está longe de uma uniformidade de interpretação e aplicação, necessitando, entretanto, ser discutido e enfrentado, entendemos que continua a revelar-se bastante coerente com o nosso sistema jurídico, a praxe registral de exigir-se, no âmbito do registro civil de pessoas naturais, para o fornecimento de quaisquer certidões de inteiro teor, principalmente em relação àqueles assentos que tenham sido lavrados antes de 5.10.1988, a competente autorização judicial, conforme podemos deduzir das disposições pertinentes do art. 227, § 6º, da Constituição Federal; do art. 1.596 do Código Civil; da LRP; da Lei nº 8.560/92 e da própria CNNR, ainda que esta última tenha adotado uma redação não suficientemente clara, de modo a ajudar a esclarecer, de vez, as dúvidas dos operadores do Direito que militam na área registral de pessoas naturais.
SAPUCAIA DO SUL/MARÇO/2011.


Autor: João Pedro Lamana Paiva é Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais da Comarca de Sapucaia do Sul - RS.

2 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, v. III, p.1067.
3 SCHEMKEL, Rodrigo Zasso. Violação do direito à privacidade pelos bancos de dados informatizados. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 812, 23.9.2005. Disponível em: . Acessado em 18.9.2010.
4 ARPEN-SP. Revista da Arpen-SP, agosto de 2009, p. 68.
5 ARPEN-SP. Revista da Arpen-SP, abril de 2010, p. 72-73.