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28 de Dezembro de 2011

Artigo - Notas sobre a filiação, Por Lívia Ronconi Costa

Lívia Ronconi Costa
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Vila Velha/ES - UVV
Membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família
Autora e co-autora de artigos jurídicos


É certo que, após a nova ordem constitucional, o Direito das Famílias foi um dos ramos da ciência jurídica que maiores reflexos sofreu, e, dentro deste vasto universo, uma de suas inúmeras partes integrantes foi diretamente tocada: a filiação.

Até o surgimento do atual texto constitucional, só eram considerados filhos detentores de direitos àqueles concebidos no seio de uma relação matrimonial, conhecidos, naquele contexto, como filhos legítimos. Todos os demais que fossem originados fora deste contexto, ou seja, fora do casamento, eram considerados como ilegítimos, e não gozavam dos mesmos direitos que os legítimos.

Não apenas aos filhos extramatrimoniais eram retirados direitos, mas também dos adotivos e dos socioafetivos, sendo este último verdadeira relação entre pais e filhos que se pauta em puro afeto e cuidado.

A partir da Constituição Federal de 1988, o legislador constituinte pôs fim a qualquer tratamento diferenciado que existia (ou poderia existir) entre os filhos, passando a desigualdade jurídica ser totalmente inaceitável, devido aos princípios da dignidade humana, solidariedade e igualdade entre os filhos.

Como se sabe, o princípio da dignidade humana (CF/88, artigo 1º, III) é a base de todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerado o início, meio e fim de todas as relações jurídicas, o qual obriga que à todos seja dispensado tratamento digno e isonômico. Por óbvio, a mencionada dignidade também se estende a qualquer tipo de filiação ou entidade familiar.

De igual plano, há de se observar que não apenas a dignidade humana é o elemento essencial a fomentar esta nova roupagem jurídica no campo da relação filiatória. A esta somam-se a igualdade (princípio da isonomia - CF/88, artigo 5º) e a solidariedade (princípio da solidariedade - CF/88, artigo 3º, I) como verdadeiros instrumentos de concretização de uma justa sociedade.

Nessa toada, o legislador constituinte fez frisar, no artigo 227, parágrafo 6º da Constituição Federal de 1988, que "os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".

Em suma: não apenas permitindo uma interpretação mais justa e humana, a Constituição Federal de 1988, acertadamente, impôs a isonomia no tratamento entre os filhos, privilegiando-se o estado de filho à origem do filho. Com este novo regramento jurídico, os filhos biológicos, civis e socioafetivos passaram a ser vistos unicamente como filhos.

Desta feita, conforme lecionam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD1, a liberdade de cada pessoa de efetivar a filiação pode ser realizada através de mecanismos biológicos (através de relacionamentos sexuais, estáveis ou não), da adoção (por decisão judicial), da fertilização medicamente assistida ou por meio do estabelecimento afetivo puro e simples da condição paternofilial.

Seja qual for o método escolhido, não haverá qualquer efeito diferenciado para o tratamento jurídico (pessoal e patrimonial) do filho.

Acompanhando toda a linha evolutiva da Carta Cidadã de 1988, o atual Código Civil ratificou este entendimento quando da elaboração do texto do artigo 1.596, proibindo-se qualquer ato discriminatório entre os descendentes, devendo haver um tratamento isonômico entre eles, não importando a sua origem, recepcionando, assim, o princípio da igualdade entre filhos.

Dentro da hodierna concepção da filiação, temos que esta nada mais é que o elo jurídico que existe entre aqueles que exercem as funções de pai e mãe, e aqueles que são recebidos e tratados como filho daquelas pessoas. Ou seja, de acordo com a doutrina de CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD2, "é a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade".

Partindo-se das linhas acima, podemos afirmar que atualmente os filhos são classificados, para fins meramente didáticos, como biológicos e não biológicos, não sendo mais permitidas as expressões "filhos legítimos" e "filhos ilegítimos".

O primeiro critério para se determinar a filiação, é através do vínculo biológico, ou seja, aquela resultante do ato sexual dos seus genitores, impondo-se, assim, o elo consanguíneo, podendo também ser estabelecida mediante técnicas de reprodução assistida, cuja regulamentação (ainda que defasada em relação aos avanços da medicina) encontra-se no artigo 1.597 do Código Civil, em seus incisos III, IV e V3. Ressalte-se a importância da Resolução n.º 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina.

Outra forma de determinação da filiação é aquela que se estabelece por laços civis, sendo retratada na adoção, ou seja, é aquela surgida a partir do preenchimento de alguns requisitos impostos pela lei, sendo este um ato solene.

Vale ressaltar que, para a adoção prevista em nossa legislação, não se fala em convívio anterior à chancela judicial. Segundo MARIA BERENICE DIAS4, "a adoção cria um vínculo fictício de paternidade-maternidade-filiação entre pessoas estranhas, análogo ao que resulta da filiação biológica. [...]. A adoção constitui um parentesco eletivo, pois decorre exclusivamente de um ato de vontade".

Vê-se, portanto, que os pais não convivem com a criança antes da sentença, adquirindo a afetividade (presumida nas relações de família) apenas com a chancela do Estado.

A disciplina jurídica da Adoção sofreu recente reforma por parte do legislador com o advento da Lei n.º 12.010/09 - Nacional de Adoção, que teve reflexos no Código Civil e alterou a redação dos artigos 1.618 e 1.619, os quais passaram a ter as seguintes previsões:

Art. 1.618: A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pela Lei n.º 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 1.619: A adoção de maiores de dezoito anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva, aplicando-se no que couber, as regras gerais da Lei n.º 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Conforme exposto nas linhas iniciais, os filhos adotivos não possuem nenhum tipo de tratamento diferenciado em relação aos tidos biológicos, sendo detentores dos mesmos direitos e obrigações.

De forma inovadora, o Código Civil, ao se pronunciar acerca das formas de se estabelecer as relações de parentesco, tratou em seu artigo 1.593 que, "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem".

É na expressão "outra origem" que se encontra a filiação socioafetiva, sendo esta a relação decorrente de uma verdade aparente, sem levar em consideração o vínculo biológico ou civil, mas apenas o convívio afetivo5. Entretanto, antes de buscarmos um conceito sobre o que vem a ser a filiação socioafetiva, é de suma importância traçar parâmetros mínimos sobre o significado da expressão "socioafetividade".

Por afetividade temos ser esta uma presunção que a legislação nos traz, no sentido de que pessoas que convivem em um determinado núcleo familiar se gostem, ao passo que o afeto se traduz em um sentimento, que pode ser positivo ou negativo.

Assim, a socioafetividade nada mais é que o estabelecimento de uma relação de parentesco que se inicia a partir de um convívio social e que, dentro desta convivência, surge o afeto em sua esfera positiva. Acompanhando o pensamento de THIAGO FELIPE VARGAS SIMÕES6, é impossível não perceber que as novas famílias estão surgindo com base no afeto que é adquirido pela convivência entre pessoas.

A partir das lições supracitadas, verifica-se que a filiação socioafetiva é aquela nascida com a convivência, ou seja, aquela que nasce com o afeto gerado por meio da convivência. A tese da relação jurídica pautada na socioafetividade já está consolidada na doutrina e, também, na jurisprudência do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, senão vejamos:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO.
1. A paternidade ou maternidade socioafetiva é concepção jurisprudencial e doutrinária recente, ainda não abraçada, expressamente, pela legislação vigente, mas a qual se aplica, de forma analógica, no que forem pertinentes, as regras orientadoras da filiação biológica. 2. A norma princípio estabelecida no art. 27, in fine, do ECA afasta as restrições à busca do reconhecimento de filiação e, quando conjugada com a possibilidade de filiação socioafetiva, acaba por reorientar, de forma ampliativa, os restritivos comandos legais hoje existentes, para assegurar ao que procura o reconhecimento de vínculo de filiação sociafetivo, trânsito desimpedido de sua pretensão. 3. Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma relação socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo, o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo biológico. 4. Não demonstrada a chamada posse do estado de filho, torna-se inviável a pretensão. 5. Recurso não provido. (STJ; REsp 1.189.663; Proc. 2010/0067046-9; RS; Terceira Turma; Relª Minª Nancy Andrighi; Julg. 06/09/2011; DJE 15/09/2011)

***
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL. ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. REPONDERÂNCIA. 1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativa à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família. 4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. 5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados. 6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado alegrar a própria torpeza em seu proveito (nemo auditur propriam turpitudinem allegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica. 7. Recurso Especial provido. (STJ; REsp 1.087.163; Proc. 2008/0189743-0; RJ; Terceira Turma; Relª Minª Nancy Andrighi; Julg. 18/08/2011; DJE 31/08/2011)

Por fim, vale ressaltar que a filiação socioafetiva, conhecida também como filiação do coração, temos ser aquela em que os pais tratam a criança como se filho fosse independente de laços sanguíneos ou laços civis (sentença), estando tal relação fundamentada no elemento primordial das relações familiares da contemporaneidade: o amor!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
LÔBO, Paulo. A constitucionalização do direito civil in Direito civil contemporâneo. Organizador Gustavo Tepedino. São Paulo: Editora Atlas, 2008.
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. A filiação socioafetiva e seus reflexos no direito sucessório. São Paulo: Fiuza, 2008.

Notas

1 Cf. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora. 3ª ed, 2011, p. 564.
2 Cf. Direito das Famílias, cit., p. 564.
3 Art. 1.597: Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
[...]; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que o falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
4 Cf. Manual de Direito das Famílias, p. 476.
5 Não se pode olvidar dos textos dos Enunciados 103 e 256, aprovados na I e III Jornadas de Direito Civil do CJF, respectivamente, os quais preveem: "103 - Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócio-afetiva, fundada na posse do estado de filho"; "256 - Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil".
6 Cf. A filiação socioafetiva e seus reflexos no direito sucessório, p. 44.