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25 de Abril de 2003

Jurisprudência do STF sobre recurso pode ser alterada

Um dos artifícios usados por juízes que querem manter suas decisões mesmo depois que instância superior revê o caso, pode estar com os dias contados. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, propôs uma revisão na jurisprudência da Corte para que seja admitido o prosseguimento de processos em que a norma atacada tenha perdido a vigência após o ajuizamento da ação -- "seja pela revogação, seja em razão do caráter temporário da norma".

Com isso, caso o juiz suspenda ou revogue sua decisão e depois a restabeleça, o arquivamento do recurso -- no meio-tempo -- não aconteceria.

O ministro sugeriu, em voto proferido esta semana, que a revisão seja restrita às ações diretas de inconstitucionalidade "pendentes de julgamento e às que vierem a ser ajuizadas".

O caso analisado pelo ministro diz respeito a um reajuste para juízes do trabalho (ADI nº 1.244). O julgamento foi interrompido no Supremo por pedido de vista da ministra Ellen Gracie.

Leia a íntegra do voto do ministro:

SEG. QUEST. ORD. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 1.244-4 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

REQUERENTE: PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

REQUERIDO: TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

RELATÓRIO (QUESTÃO DE ORDEM)

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Preliminarmente ao eventual julgamento do mérito da presente Ação, afigura-se necessário o exame da questão de ordem que passo a expor.

Cuida-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra deliberação Administrativa do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, tomada em sessão do Órgão Especial realizada em 7 de dezembro de 1994, no Processo GDG nº 581/94. Em tal deliberação, acolhendo requerimento da Associação de Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região, o TRT da 15ª Região deferiu aos Magistrados da Justiça do Trabalho, inclusive Juizes classistas, bem como aos funcionários vinculados ao mesmo Tribunal, a partir de abril de 1994, o reajuste de 10,94% (dez vírgula noventa e quatro por cento), correspondente à diferença entre o resultado da conversão da URV - Unidade Real de Valor - em reais, com base no dia 20 de abril de 1994 e obtido na operação de conversão com base no dia 30 do mesmo mês e ano.

Registra a inicial que a Medida Provisória nº 434, de 27 de fevereiro de 1994, interpretada pelo TRT no sentido de que a conversão de vencimentos em URV dos membros do Poder Judiciário deveria ser feita com base no dia do efetivo pagamento, perdeu eficácia desde a sua edição em razão de não ter sido convertida em lei no prazo de trinta dias. Afirma-se, ainda, que a Medida Provisória nº 457, de 29 de março de 1994, converteu-se na Lei nº 8.880, de 27 de maio de 1994, cujo teor estabeleceu a conversão em URV dos vencimentos em geral, inclusive dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público da União, em 1º de março de 1994. Esclarece, finalmente, que o Decreto Legislativo nº 17/94, editado pelo Congresso Nacional, no exercício de sua competência constitucional exclusiva (art. 62, parágrafo único), converteu a diferença verificada nos vencimentos dos membros e servidores do Poder Judiciário relativa ao mês de março de 1994 em abono, restrito a esse mês, sem repercussão nos vencimentos futuros.

Sustenta-se, em síntese, a incompatibilidade da Decisão Administrativa do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região com os arts. 96, II "b", e 169 da Constituição Federal, ao argumento de que o aumento de vencimentos aos magistrados e servidores públicos dos serviços administrativos dos Tribunais exigem iniciativa de lei e prévia dotação orçamentária para a sua concessão. Refere-se ainda à usurpação de competência exclusiva do Congresso Nacional relativa à disciplina das relações jurídicas decorrentes das medidas provisórias não convertidas em lei.

O pedido de cautelar foi deferido por esta Corte em sessão plenária de 29 de março de 1995, para o fim de suspender a vigência da referida Deliberação do TRT da 15º Região.

Posteriormente, em ofício de 23 de julho de 1997, o Presidente do TRT da 15ª Região informou a esta Corte que Juiz Federal Substituto, nos autos de ação de rito ordinário, teria concedido antecipação de tutela determinando exatamente o pagamento daquela verba concedida pela Deliberação do TRT.

O teor do referido ofício do Presidente do TRT da 15ª Região foi submetido, pelo Ministro Néri da Silveira, em questão de ordem, ao exame desta Corte. Em sessão de 28 de agosto de 1997, o tribunal, em votação majoritária, determinou a suspensão prejudicial do processo instaurado perante a Justiça Federal de 1ª Instância e ordenou, também, a sustação do pagamento nele determinado (fls. 191 a 206).

Em ofício de 15 de outubro de 1997 (fl. 180), o Vice-Presidente do TRT da 15ª Região, no exercício da Presidência, informou que, naquela data, a decisão proferida no Procedimento Administrativo GDG-581/94 teria sido cancelada em sessão realizada no âmbito daquele Tribunal. Tal informação foi reiterada em ofício posterior, subscrito pelo Presidente daquele TRT (fl. 182).

Diante de tal informação, o relator, Ministro Néri da Silveira, exarou o despacho de fl. 184, determinando fosse ouvido o Procurador-Geral da República, requerente desta Ação Direta.

O Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro, manifestou-se no sentido do prosseguimento da ação, a despeito da revogação do ato impugnado. Na oportunidade, asseverou o ilustre Procurador-Geral:

"É verdade que, conforme a jurisprudência deste Colendo Supremo Tribunal Federal, a partir da orientação adotada em 1992 na ADIn nº 709 (Questão de Ordem), de que foi Relator o Eminente Ministro PAULO BROSSARD, tem-se como prejudicada a ação com a revogação superveniente da lei argüida de inconstitucional (in RTJ 154/401). Esta jurisprudência alterou entendimento anterior da Corte, adotado durante longo período de tempo, no sentido da não prejudicialidade, ficando vencidos os Eminentes Ministros MOREIRA ALVES, SYDNEY SANCHES, OCTAVIO GALLOTTI e SEPÚLVEDA PERTENCE que julgavam prejudicado apenas o requerimento de medida cautelar.

Penso, contudo, que as peculiaridades do presente processo devem conduzir à conclusão de que não está prejudicada esta ação direta de inconstitucionalidade, sob pena de permitir verdadeira fraude à jurisdição constitucional deste Colendo Supremo Tribunal Federal.

É preciso ter em mente que o controle jurisdicional de constitucionalidade, desde a sua criação pretoriana pela Suprema Corte Americana, não significa apenas invalidar uma norma por incompatibilidade com a Constituição. Significa sobretudo interpretar a Constituição, formando jurisprudência sobre o conteúdo e extensão das normas e princípios constitucionais. E neste caso, sendo o ato normativo impugnado resolução de Tribunal, tendo como interessados dentre outros os próprios Juizes da Corte Regional do Trabalho, e tendo este Colendo Supremo Tribunal Federal ordenado a sustação do pagamento e a suspensão prejudicial da ação ordinária perante a Justiça Federal de 1ª instância sobre a mesma matéria, não creio que possa a ação direta de inconstitucionalidade ser considerada prejudicada.

Vale lembrar que as decisões definitivas que declaram a inconstitucionalidade de uma norma nas ações diretas de inconstitucionalidade, segundo a jurisprudência pacífica desta Colenda Corte, têm efeitos ex tunc. O Acórdão que declara a inconstitucionalidade da norma não apenas atinge a norma jurídica abstrata, invalidando-a e retirando-a do mundo jurídico, mas alcança também, ab initio os atos e efeitos fundados na norma impugnada. Dado o caráter declaratório da ação, pois, não me parece que a revogação do ato normativo pelo TRT da 15ª Região, ainda mais prosseguimento da ação direta de inconstitucionalidade.

Não poderia o TRT da 15ª Região - diretamente interessado na causa - revogar o seu ato normativo provocando efeito de verdadeira desistência, inadmissível nas ações diretas de inconstitucionalidade, quando a questão já se encontrava indisponível para as partes, submetida a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. E verifica-se ainda que, logo após ter revogado o ato normativo impugnado, aquela Corte Regional do Trabalho editou nova resolução administrativa, em novembro de 1997, de conteúdo praticamente idêntico sobre a mesma matéria, afrontando, assim, a autoridade das decisões proferidas por este Colendo Supremo Tribunal Federal. Tal resolução é objeto de nova ação direta de inconstitucionalidade que propus, em tramitação neste Egrégio Supremo Tribunal Federal." (fls. 188/189)

É explícito, portanto, o propósito do Procurador-Geral de ver revisto o entendimento desta Corte no sentido da prejudicialidade das ações diretas em hipóteses de revogação do ato impugnado.

Assim, tenho por oportuno submeter à Corte questão de ordem relativa à prejudicialidade da presente Ação Direta.

VOTO (QUESTÃO DE ORDEM)

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Tornou-se remansoso, nesta Corte, o entendimento no sentido de que a revogação de ato normativo objeto de ação direta implica a prejudicialidade desta. O marco inicial dessa jurisprudência está na ADI no 709, da relatoria do Ministro Paulo Brossard.

Em seu voto, explicitara Brossard posição que tornou-se pacífica nesta Corte, verbis:

"2. Se ação direta tem por objeto específico a declaração em tese de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, com a finalidade de expungir do sistema jurídico vigente aqueles atos que se não harmonizam com a Constituição, é de concluir-se que a revogação do ato normativo, objeto da declaração, traz como conseqüência a prejudicialidade da ação, por perda de objeto.

3. Na ação direta de inconstitucionalidade o interesse de agir existe se e enquanto a lei estiver em vigor. Não se pode admitir ação direta contra ato normativo revogado, porque o interesse de extirpar do ordenamento jurídico o ato normativo maculado pela inconstitucionalidade, já não existe porque a própria autoridade ou órgão requerido se incumbiu de fazê-lo. O plenário da Corte assentou, quando do julgamento da ADIN 2-1 do Distrito Federal, que lei anterior à Constituição, que a contrarie, não pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, porque a Constituição superveniente não torna inconstitucionais as leis anteriores com ela conflitantes, mas as revoga. Deste modo, tanto a lei revogada como a que venha a ser revogada, no curso da ação direta, não pode constituir seu objeto.

4. Quanto aos eventuais efeitos que a lei revogada possa ter produzido no período de sua vigência, não pode ser ele abarcado pelo específico interesse de agir, reservado exclusivamente às pessoas e entidades arroladas no artigo 103 da Constituição, que é a declaração 'in abstrato' da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual.

5. A discussão dos efeitos concretos da lei revogada, no período em que esteve vigente, por não condizer com a via excepcional da ação direta, deve ser remetida às vias ordinárias por ser esta a adequada à discussão das situações jurídicas individuais e concretas."

Penso, com a máxima vênia a eventuais opiniões em sentido contrário, que tal entendimento merece ser revisto.

A renúncia a uma aferição de constitucionalidade da lei revogada não se deixa compatibilizar facilmente com a natureza e os objetivos do controle abstrato de normas, que se destina, fundamentalmente, à defesa da Constituição e ao estabelecimento de segurança jurídica.

A posição firmada a partir da ADI no 709 parte de um pressuposto que se afigura equivocado, qual seja a concepção de que o pronunciamento da Corte, nas ações diretas, alcança os atos normativos tão-somente no plano da vigência. E é a própria jurisprudência desta Corte que evidencia tal equívoco, bastando lembrar as hipóteses em que o Tribunal concede liminares em ação direta, em que se atinge, especialmente, a dimensão de eficácia da lei impugnada.

A utilização do controle de constitucionalidade para a fiscalização dos efeitos concretos de atos normativos também não é estranha no Direito alemão. De fato, no Direito alemão é reconhecido, em geral, o cabimento da ação do controle abstrato em relação a direito revogado, tendo em vista especificamente a circunstância de que a lei revogada pode ser aplicada além do tempo de sua revogação. Entende-se que a aferição de sua constitucionalidade, na hipótese, não violenta a natureza do controle abstrato de normas (Cf. BverfGE 35, 193 (196); Erichsen, Die einstweilige Anordnung, in Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, v. 1, p. 170 (186); Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, p. 226 (230); Klein, in Maunz, dentre outros, BverfGG, § 32, n. 32). Decisivo é, no caso de normas materiais, se elas ainda têm eficácia e, no caso de normas formais, se elas ainda preservam significado específico no âmbito da organização estatal (BverfGE 5, 25 (28); BverfGE 20, 56 (94); Söhn, Die abstrakte Normenkontrolle, in Bundesverfassungs-gericht und Grundgesetz, v. 1, p. 292 (315); Stern, Bonner Kommentar, art. 93, n. 258; Ulsamer, in Maunz, dentre outros, BverfGG, § 76, n. 18.). Esse é o caso, por exemplo, das leis orçamentárias até o reconhecimento de sua observância pelo Parlamento e pelo Conselho Federal (BverfGE 5, 25 (28); BverfGE 20, 56 (94); cf. também Stern, Bonner Kommentar, art. 93, n. 258).

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera inadmissível a propositura da ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo já revogado (Rp. 1.034, Relator: Ministro Soares Muñoz, RTJ n. 111, p. 546; Rp. 1.120, Relator: Ministro Decio Miranda, RTJ n. 107, p. 928-30; Rp. 1.110, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ, 25 mar. 1983). Todavia, sob o império da Constituição de 1967/69 entendia-se que, se a revogação ocorresse após a propositura da ação, era possível que o Tribunal procedesse à aferição da constitucionalidade da lei questionada, desde que a norma tivesse produzido algum efeito no passado. Caso contrário, proceder-se-ia à extinção do processo por falta de objeto (Rp. 876, Relator: Ministro Bilac Pinto, DJ, 15 jun. 1973; Rp. 974, Relator: Ministro Cunha Peixoto, RTJ n. 84, p. 39; Rp. 1.161, Relator: Ministro Néri da Silveira, RTJ n. 115, p. 576-89). Elidia-se, assim, a possibilidade de que o legislador viesse a prejudicar o exame da questão pelo Tribunal mediante a simples revogação.

Esse entendimento do Tribunal impôs-se contra a resistência de algumas vozes. Sustentou-se a opinião de que se a lei não está mais em vigor, isto é, se ela não mais existe, não haveria razão para que se aferisse a sua validade no âmbito do controle de constitucionalidade (Voto vencido do Ministro Moreira Alves, Rp. 971, Relator: Ministro Djaci Falcão, RTJ n. 87, p. 758 (765)).

O entendimento dominante subsistiu, ainda, sob o regime da Constituição de 1988 (ADIn 434, Relator: Ministro Octavio Gallotti, DJ, 17 jun. 1991, p. 8171; ADIn 502, Relator: Ministro Paulo Brossard, DJ, 27 maio 1991, p. 6906).

Essa orientação sofreu mudança a partir do julgamento da já referida ADI no 709 (Questão de Ordem), quando o Supremo Tribunal Federal passou a admitir que a revogação superveniente da norma impugnada, independentemente da existência, ou não, de efeitos residuais e concretos, prejudica o andamento da ação direta (ADIn 709, Relator: Ministro Paulo Brossard, DJ, 20 maio 1992, p. 12248; ADIn 262, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ, 8 mar. 1993; ADIn 712, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ, 25 fev. 1993, p. 2287).

Mas o fato é que a extinção de uma ação direta, por prejudicialidade, nem sempre significa a eliminação de todas as controvérsias de índole constitucional relacionadas à aplicação do ato normativo que perdeu vigência. No plano da eficácia, pode-se verificar que determinada norma que não mais vige produziu e, eventualmente, continua a produzir efeitos inconstitucionais.

E não parece adequado que essas eventuais controvérsias, que poderiam de imediato ser solvidas em sede de controle abstrato, sejam encaminhadas ao sistema de controle difuso. Não está demonstrada nenhuma razão, de base constitucional, a evidenciar que tão-somente no âmbito do controle difuso é possível aferir a constitucionalidade dos efeitos concretos de uma lei. Em sentido contrário, conforme exposto, não é difícil encontrar na praxe desta Corte a utilização das ações diretas para suspender especificamente a eficácia de atos normativos.

Contra essa renúncia em favor do sistema de controle difuso há um argumento, a meu ver decisivo, que decorre do sistema adotado pela Constituição de 1988.

Como já tive oportunidade de salientar, se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do Procurador-Geral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta.

O Constituinte assegurou o direito do Procurador-Geral da República de propor a ação de inconstitucionalidade. Este é, todavia, apenas um dentre os diversos órgãos ou entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade.

Nos termos do art. 103 da Constituição de 1988, dispõem de legitimidade para propor a ação de inconstitucionalidade o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de uma Assembléia Legislativa, o Governador do Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.

Com isso satisfez o constituinte apenas parcialmente a exigência daqueles que solicitavam fosse assegurado o direito de propositura da ação a um grupo de, v. g., dez mil cidadãos ou que defendiam até mesmo a introdução de uma ação popular de inconstitucionalidade (Cf., a propósito, as propostas de Vilson Souza e Vivaldo Barbosa à Comissão de Organização de Poderes e Sistema de governo da Assembléia Constituinte, in Assembléia nacional Constituinte, emendas oferecidas à Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo, 1988, p. 214 e 342).

Tal fato fortalece a impressão de que, com a introdução desse sistema de controle abstrato de normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente.

Não é menos certo, por outro lado, que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial - ainda que não desejada - no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil.

O monopólio de ação outorgado ao Procurador-Geral da República no sistema de 1967/69 não provocou uma alteração profunda no modelo incidente ou difuso. Este continuou predominante, integrando-se a representação de inconstitucionalidade a ele como um elemento ancilar, que contribuía muito pouco para diferençá-lo dos demais sistemas "difusos" ou "incidentes" de controle de constitucionalidade.

A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

Convém assinalar que, tal como já observado por Anschütz ainda no regime de Weimar, toda vez que se outorga a um Tribunal especial atribuição para decidir questões constitucionais, limita-se, explícita ou implicitamente, a competência da jurisdição ordinária para apreciar tais controvérsias (Gerhard Anschütz, Verhandlungen des 34, Deutschen Juristentags, Berlim e Leipzig, 1927, v. 2, p. 208).

Portanto, parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade.

Assim, se se cogitava, no período anterior a 1988, de um modelo misto de controle de constitucionalidade, é certo que o forte acento residia, ainda, no amplo e dominante sistema difuso de controle. O controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso.

A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Ressalte-se que essa alteração não se operou de forma ainda profunda porque o Supremo Tribunal manteve a orientação anterior, que considerava inadmissível o ajuizamento de ação direta contra direito pré-constitucional em face da nova Constituição.

A ampla legitimação, a presteza e celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado. Assim, se continuamos a ter um modelo misto de controle de constitucionalidade, a ênfase passa residir não mais no sistema difuso, mas no sistema de perfil concentrado.

Essa peculiaridade foi destacada por Sepúlveda Pertence no voto que proferiu na ADEC n. 1, verbis:

"(...) Esta ação é um momento inevitável na prática da consolidação desse audacioso ensaio do constitucionalismo brasileiro - não, apenas como nota Cappelletti, de aproximar o controle difuso e o controle concentrado, como se observa em todo o mundo - mas, sim, de convivência dos dois sistemas na integralidade das suas características.

Esta convivência não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará, se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme, ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito.

Por outro lado, (...), o ensaio difícil de convivência integral dos dois métodos de controle de constitucionalidade do Brasil só se torna possível na medida em que se acumularam, no Supremo Tribunal Federal, os dois papéis, o de órgão exclusivo do sistema concentrado e o de órgão de cúpula do sistema difuso.

De tal modo, o peso do Supremo Tribunal, em relação aos outros órgãos de jurisdição, que a ação declaratória de constitucionalidade traz é relativo, porque, já no sistema de convivência dos dois métodos, a palavra final é sempre reservada ao Supremo Tribunal Federal, se bem que, declarada a inconstitucionalidade no sistema difuso, ainda convivamos com o anacronismo em que se transformou, após a criação da ação direta, a necessidade da deliberação do Senado para dar eficácia erga omnes à declaração incidente" . (RTJ 159, p. 389-90).

A ênfase ou o reforço do sistema de perfil concentrado parece recomendar, hoje, a solução contrária à adotada no precedente em questão. Remeter uma controvérsia constitucional já instaurada perante o Supremo Tribunal para as vias ordinárias, se for caso, não parece compatível com os princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição.

A posição do Tribunal que obsta ao prosseguimento da ação após a revogação da lei, pode levar, seguramente, a resultados insatisfatórios. Se o Tribunal não examina a constitucionalidade das leis já revogadas, torna-se possível que o legislador consiga isentar do controle abstrato lei de constitucionalidade duvidosa, sem estar obrigado a eliminar as suas conseqüências inconstitucionais. É que mesmo uma lei revogada configura parâmetro e base legal para os atos de execução praticados durante o período de sua vigência (Rinck, Initiativ7e für die verfassungsmässige Prüfung von Rechtsnormen, EuGRZ 1974, p. 91 (96)).

Contra essa objeção poder-se-ia afirmar que a existência de um amplo controle incidente de normas possibilita que se conteste a constitucionalidade de uma lei no caso concreto, sendo dispensável, portanto, a utilização, nesses casos, do controle abstrato.

Evidentemente, não se pode afirmar, com segurança, que qualquer indivíduo dispõe de condições de provocar o exame da matéria no controle incidental, uma vez que esse sistema pressupõe sempre a defesa de um interesse jurídico específico, que nem sempre pode ser demonstrado (Cf. Bryde, Verfassungsentwicklung Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, p. 106).

Cabe anotar, ainda, que a referida jurisprudência restritiva firmada pelo Tribunal, justificável em uma perspectiva de viabilização funcional da própria Corte, tem permitido, em alguns casos, autênticas fraudes contra o exercício da jurisdição constitucional. É essa a legítima preocupação do Procurador-Geral da República, que já havia sido externada pelo Chefe do Ministério Público nos autos da ADI no 1.661.

Tal como ocorre na presente ação, na ADI no 1.661 o Procurador-Geral da República impugnava Resolução Administrativa no 116/97 do Tribunal Regional do Trabalho da 8a Região, que concedeu aos juízes e servidores daquela Região reajuste na ordem de 10,94% a partir de abril de 1994 até janeiro de 1995. Após o ajuizamento da Ação, a Resolução foi revogada pelo próprio TRT, o que ocasionou a extinção da Ação Direta, por prejudicialidade.

No caso em discussão, conforme adverte o Procurador-Geral da República, o Tribunal Regional do Trabalho não se limitou a revogar a resolução inquinada de inconstitucional. Cuidou de editar outra de teor semelhante, que também foi impugnada pelo Procurador-Geral da República perante esta Corte na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.781, da relatoria do Ministro Néri da Silveira. Na ADI no 1.781, impugnou-se a Resolução Administrativa tomada no Processo GDG no 353/97 pelo TRT da 15ª Região, que "reconheceu a existência de direito ao reajuste de 11,98% a partir de abril de 1994, com os valores corrigidos monetariamente, resultado da conversão em URV - Unidade Real de Valor dos vencimentos dos Juízes Togados, Classistas e servidores da Região, ativos e inativos".

A liminar foi deferida na ADI 1.781. Na oportunidade, apontou o Ministro Néri da Silveira o propósito do TRT da 15ª Região em tornar ineficaz a cautelar deferida na ADI ora em exame, verbis:

"Sendo evidente, de outra parte, que o Tribunal requerido em deliberando como fez, pretendeu tornar ineficaz a cautelar na ADIN 1244-4, ao revogar a Decisão Administrativa sobre a mesma matéria dela objeto, proponho se confira à presente cautelar a eficácia "ex tunc", de tal maneira que os efeitos da referida decisão normativa ora impugnada e antes aludida, sejam inteiramente insubsistentes, com a imediata devolução dos valores eventualmente pagos, em desrespeito às decisões do Supremo Tribunal Federal."

E mais, não deixou o Ministro Maurício Corrêa de registrar sua perplexidade perante a atitude daquela Corte trabalhista, verbis:

"Não poderia deixar de externar minha estranheza em face do comportamento dos juízes responsáveis por esses atos. Disso nasce o desrespeito e a falta de credibilidade do Poder Judiciário. Se já havia decisão nesse sentido, a mim parece que não lhes competia, sob o ponto de vista da exação do cumprimento do dever, como magistrados, tomarem atitudes dessa natureza.

Fica, portanto, o meu registro de certa indignação com relação a esse procedimento."

A ADI 1.781 não foi submetida ao exame de mérito. Isto porque também o ato ali impugnado restou revogado pelo TRT da 15ª Região. (Decisão de 4 de outubro de 2002, subscrita pelo Ministro Maurício Corrêa, relator após a redistribuição do processo)

A questão colocada por iniciativa do Procurador-Geral afigura-se legítima. Admitindo-se, conforme já exposto, que o exercício da jurisdição constitucional abstrata não se volta exclusivamente ao plano da vigência, e evidenciado o propósito da Constituição de 1988 no sentido do reforço do sistema de controle abstrato de constitucionalidade, parece evidente que a linha jurisprudencial inaugurada com a ADI no 709 implica inaceitável limitação ao amplo exercício da competência constitucional do STF.

Por fim, é necessário não esquecer da consolidação da argüição de descumprimento de preceito fundamental como mecanismo subsidiário às ações diretas. Admitindo-se a utilização da ADPF para o exame da constitucionalidade de atos revogados, não é difícil imaginar que a extinção de uma ação direta por prejudicialidade, nos termos ora colocados, daria espaço ao uso imediato da argüição. Assim, sob uma perspectiva de economia processual, já não faria sentido a manutenção daquela idéia de prejudicialidade.

Meu voto, portanto, é no sentido da revisão da jurisprudência desta Corte - restrita, obviamente, às ações diretas pendentes de julgamento e às que vierem a ser ajuizadas - para o fim de admitir o prosseguimento dos processos de controle abstrato nas hipóteses em que a norma atacada tenha perdido a vigência após o ajuizamento da ação, seja pela revogação, seja em razão do caráter temporário da norma.

Fonte: Revista Consultor Jurídico
Data: 29/04/2003

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