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“A desburocratização do procedimento de parentalidade socioafetiva tem grande relevância na prevenção do abandono parental”
Presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do IBDFAM explica os possíveis impactos que a ausência paterna pode ter na vida de um indivíduo
No mês em que se comemora o Dia dos Pais, a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen/SP) divulgou um levantamento com o número de crianças paulistas registradas sem a filiação paterna na certidão de nascimento apenas nos primeiros sete meses de 2022.
Até o dia 31 de julho, mais de 17 mil crianças foram registradas sem o nome do pai no estado de São Paulo. Os números chamam a atenção, ganhando maior relevância quando comparados com o total de nascimentos. 5,5% do total das crianças nascidas tem apenas o nome da mãe em seu registro civil.
Para explicar mais sobre o impacto que estes números terão na sociedade, e, principalmente, na vida destas crianças, além de comentar a importância da desburocratização do reconhecimento de paternidade, a Arpen/SP realiza entrevista exclusiva com Márcia Fidelis Lima, presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Arpen/SP – Os cartórios registraram o maior número de mães solo no Brasil, desde 2018. Qual o impacto esses dados podem ter na sociedade?
Márcia Fidelis Lima – Em muitos aspectos, esse impacto será tão maior quanto mais tradicional for a comunidade em que convivem essas famílias em que haja crianças cujos registros de nascimento tenham apenas a maternidade estabelecida.
Inobstante o regramento constitucional desvincular da necessária conjugalidade o reconhecimento jurídico pleno da parentalidade, ainda há uma parcela considerável da sociedade, culturalmente ligada à visão exclusivista da família, relegando à ilegitimidade de fato as conjugalidades não matrimonializadas, estruturadas de acordo com os conceitos patriarcais de outrora.
Arpen/SP – E quais impactos podem ter as crianças que não possuem o nome do pai no registro civil?
Márcia Fidelis Lima – Filhos de pais não casados entre si, principalmente se esse filho for registrado apenas pela mãe – pejorativamente ainda denominadas por muitos como "mães solteiras" – podem ser alvo de discriminação quando o meio social em que vivem ainda não tenha se livrado das amarras sociais que classificam pessoas.
E esse é o maior impacto da falta da paternidade no registro, considerando-se os aspectos psicológicos que levam crianças e adolescentes ao sentimento de não pertencimento, passível de gerar feridas indeléveis ao cidadão, causando-lhe sofrimento.
Diferentemente do impacto psicológico causado pela discriminação, a função de pai depende de aspectos da vida real porque não precisa ser exercida por um homem, casado no civil com a mãe da criança ou adolescente.
Arpen/SP – Quais as principais formas de mudar esse cenário? As escolas podem auxiliar nessa atuação?
Márcia Fidelis Lima – A maioria das escolas e outras instituições que lidam com convívio de crianças e adolescentes em grupos fazem um trabalho inclusivo, propagando naturalmente a pluralidade, tornando cada vez menos importante para a sociedade a configuração familiar e a vida íntima de cada pessoa.
Não havendo essa pressão causada pelo natural sentimento de pertencimento ao grupo, a tendência é que esse aspecto da falta da paternidade perca força até não mais causar impacto relevante à vida em sociedade.
Arpen/SP – Além das questões emotivas e relacionais, quais as demais implicações que podem ocorrer com a falta de um pai na vida de uma criança?
Márcia Fidelis Lima – Alguns pontos práticos podem ser ressaltados, como a responsabilidade pelo sustento do filho e pelos cuidados com a condução da sua vida enquanto pessoa em formação, em condições de vulnerabilidade.
A função de pai precisa ser suprida, principalmente na infância, para garantir um desenvolvimento físico e emocional sadio da pessoa. Uma segunda pessoa exercendo o poder familiar pode ser fundamental para suprir as necessidades materiais da infância e da adolescência. Nessa mesma linha, essa outra pessoa divide responsabilidades, como levar à escola, auxiliar nos estudos e garantir o lazer. Esses aspectos não deixarão de impactar na vida dos filhos.
Arpen/SP – De que forma a paternidade socioafetiva pode diminuir os casos de abandono parental? Como a figura do pai para uma criança pode impactar sua vida?
Márcia Fidelis Lima – A desburocratização do procedimento para formalização jurídica da parentalidade socioafetiva tem grande relevância na prevenção do abandono parental. Em se tratando de paternidade, que é o tema discutido, os vínculos de socioafetividade, por sua própria natureza de exercício fático da relação de parentesco, é um dos aspectos da vida real a que me referi anteriormente.
O pai socioafetivo já exerce a função de pai, mas esse exercício é limitado tanto por não incluir a representatividade formal do filho nas relações jurídicas e na rotina diária de vida dele como também por não suprir, na totalidade, as necessidades psicológicas do filho no convívio social, onde ele está sujeito à discriminação por não ter no registro um nome de pai.
Assim, quando há a possibilidade dessa família formalizar junto ao registro de nascimento do filho a paternidade, reconhecendo-lhe plenos efeitos jurídicos de vínculo de parentesco, com certeza teremos menos famílias sendo impactadas pela falta de paternidade no registro.
Isso não deveria ser relevante, mas as transformações culturais são lentas e ainda há um grande caminho a percorrer para que todos possamos viver nossas relações de afeto sem interferências e discriminações.
Arpen/SP – Desde 2012, o procedimento para reconhecimento de paternidade se tornou mais simples e fácil, ao ser feito diretamente nos Cartórios de Registro Civil, de forma gratuita e sem a necessidade de procedimento judicial, possibilitando uma diminuição de quase 110 mil registros antes feitos somente em nome da mãe. Como vocês analisam a atuação dos cartórios de registro civil na facilitação desse procedimento?
Márcia Fidelis Lima – A Lei nº 8.560/1992, que trata sobre a paternidade e a forma de se reconhecê-la quando os pais não são casados, já trazia no seu texto possibilidades muito simples para que se realizasse o reconhecimento de paternidade. Declaração pessoal, declaração por escrito público ou particular e até disposições testamentárias já eram formas de se ter um instrumento hábil para inclusão registral da paternidade.
No entanto, o Provimento nº 16/2012, do CNJ, estabeleceu, em termos procedimentais, as disposições legais em vigor. Essa regulamentação foi muito importante para se criar um padrão nacional de procedimento, por permitir que se colha a declaração pessoal de um pai em um estabelecimento registral, que ficará incumbido do seu encaminhamento ao oficial de onde tenha sido lavrado o registro.
Outro ponto positivo da edição do provimento foi a publicidade dada pelo CNJ ao tema, chamando a atenção da comunidade interessada através da imprensa, de redes sociais e até de eventos comunitários de promoção da cidadania.
A atuação dos registradores civis foi fundamental por ser o responsável pelo trabalho de instrumentalização e formalização da paternidade, mesmo sendo o ato isento de emolumentos.
Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/SP