Notícias

20 de Janeiro de 2005

"O Impacto do Novo Código Civil no Regime de Bens do Casamento"

Um importante aspecto do Novo Código Civil, ainda pouco discutido nos meios acadêmicos, merece a nossa redobrada atenção, por seus reflexos diretos na vida das pessoas casadas, ou que pretendam contrair matrimônio. Como se sabe, segundo o sistema do Código de 1916, os nubentes têm, à sua disposição, quatro regimes de bens, podendo livremente escolhê-los, por meio do pacto antenupcial, e desde que não haja causa para a imposição do regime legal de separação obrigatória (art. 258, parágrafo único, CC-16). Esses regimes, de todos conhecidos, são os de: comunhão universal, comunhão parcial, dotal, e separação absoluta.
Afastada a aplicabilidade social do regime dotal, que não mais corresponde aos atuais anseios da sociedade brasileira, temos a subsistência dos outros três, sendo que, em geral, as partes não cuidam de escolher previamente um regime, oportunizando a incidência da regra legal supletiva do art. 258 do Código Beviláqua (com redação determinada pela Lei n. 6515/77), referente ao regime da comunhão parcial. A partir do casamento, pois, firma-se a imutabilidade do regime escolhido, nos
termos do art. 230 do CC. O que se disse até aqui não é novidade.
O Código Civil de 2002, por sua vez, ao disciplinar o direito patrimonial no casamento, alterou profundamente determinadas regras, historicamente assentadas em nosso cenário jurídico nacional. Revogou, por exemplo, as normas do regime dotal (o que já não era sem tempo!), adotando uma nova modalidade de regime, que passaria a coexistir com os demais, o denominado regime de participação final nos aqüestos (arts. 1672 a 1686). Comentando este novo instituto, SILVIO DE SALVO VENOSA, com absoluta propriedade, pondera que: "é muito provável que esse regime não se adapte ao gosto de nossa sociedade. Por si só verifica-se que se trata de estrutura complexa, disciplinada por nada menos do que 15 artigos, com inúmeras particularidades. Não se destina, evidentemente, à grande maioria da população brasileira, de baixa renda e de pouca cultura. Não bastasse isso, embora não seja dado ao jurista raciocinar sobre fraudes, esse regime fica sujeito a vicissitudes e abrirá campo vasto ao cônjuge de má fé." (Direito Civil - Direito de Família, 3. ed.. São Paulo: Atlas, 2003, pág. 191).
Neste novo regime, cada cônjuge possui patrimônio próprio (como no regime da separação), cabendo, todavia, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento (art. 1672). Embora se assemelhe com o regime da comunhão parcial, não há identidade, uma vez que, neste último, entram também na comunhão os bens adquiridos por apenas um dos cônjuges, e, da mesma forma, determinados valores, havidos por fato eventual (a exemplo do dinheiro proveniente de loteria). No regime de participação final, por sua vez, apenas os bens adquiridos a título oneroso, por ambos os cônjuges, serão partilhados, quando da dissolução da sociedade, permanecendo, no patrimônio pessoal de cada um, todos os outros bens que cada cônjuge, separadamente, possuía ao casar, ou aqueles por ele adquiridos, a qualquer título, no curso do casamento.
Uma outra modificação legislativa chama ainda a nossa atenção. Subvertendo o tradicional princípio da imutabilidade do regime de bens, o Código de 2002, em seu art. 1639, § 2°, admite a alteração do regime, no curso do casamento, mediante autorização judicial, em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas, e ressalvados os direitos de terceiros. Não cabendo aqui a análise pormenorizada deste dispositivo, ressaltamos apenas que tal pleito deverá ser formulado no bojo de procedimento de jurisdição graciosa, com a necessária intervenção do Ministério Público, a fim de que o juiz da Vara de Família avalie a conveniência e a razoabilidade da mudança, que se efetivará mediante a concessão de alvará de autorização, seguindo-se a necessária expedição de mandado de averbação.
Entretanto, feitas tais ponderações, uma indagação se impõe: terão direito à alteração de regime as pessoas casadas antes do Código de 2002? Essa indagação reveste-se ainda de maior importância, quando consideramos o princípio da irretroatividade das leis 1 , e, sobretudo, o fato de o próprio Código Novo estabelecer, em seu art. 2.039, que: "o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1° Janeiro de 1916, é por ele estabelecido". (grifos nossos)
Uma primeira interpretação conduz-nos à conclusão de que os matrimônios contraídos na vigência do Código de 1916 não admitiriam a incidência da lei nova, razão por que esses consortes não poderiam pleitear a modificação do regime. Não concordamos, todavia, com este entendimento.
Em nossa opinião, o regime de bens consiste em uma instituição patrimonial de eficácia continuada, gerando efeitos durante todo o tempo de subsistência da sociedade conjugal, até a sua dissolução. Dessa forma, mesmo casados antes de 11 de janeiro de 2002 - data da entrada em vigor do Novo Código -, os cônjuges poderiam pleitear a modificação do regime, eis que os seus efeitos jurídico-patrimoniais adentrariam a incidência do novo diploma, submetendo-se às suas normas. Raciocínio contrário coroaria a injustiça de admitir a modificação do regime de bens de pessoas que se uniram matrimonialmente um dia após a vigência da lei, negando-se o mesmo direito aos casais que hajam se unido um dia antes. Todas essas ponderações, entretanto, deverão aguardar o posicionamento da jurisprudência pátria, e, inclusive, do nosso Tribunal de Justiça, que, com certeza, será chamado a dirimir freqüentes controvérsias ocorridas em nosso Estado.

* Pablo Stolze Gagliano é Juiz de Direito no Estado da Bahia, Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, e do Instituto de Estudos Jurídicos Luiz Flávio Gomes - IELF (SP).
1 Sobre o conflito intertemporal de normas, cf. o nosso Novo Curso de Direito Civil - Parte Geral, vol. I, Ed. Saraiva, segunda edição, 2003, cap. III, item 3.

Assine nossa newsletter