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Artigo - A desjudicialização no Brasil: Origem, evolução e aspectos constitucionais
Por Emílio Guerra
Este trabalho
analisa o fenômeno da desjudicialização no ordenamento jurídico brasileiro,
desde suas origens até os desenvolvimentos contemporâneos. Examina-se a base
constitucional e legal que fundamenta este movimento, destacando as diferenças
cruciais entre a desjudicialização para agentes dotados de fé pública (notários
e registradores) e para entidades privadas desprovidas desta prerrogativa. O
estudo aborda as implicações jurídicas desta distinção, principalmente quanto
aos aspectos probatórios e à segurança jurídica, alertando para os riscos de
procedimentos conduzidos por agentes sem fé pública e seus impactos no sistema
judicial brasileiro. Conclui-se que a desjudicialização constitucionalmente
adequada é aquela realizada dentro dos estritos parâmetros do art. 236 da
CF/88, mantendo o controle efetivo do Poder Judiciário sobre os procedimentos
desjudicializados.
Sumário
1.
Introdução.
2.
Origens e evolução histórica da
desjudicialização no Brasil.
3.
Base constitucional e legal 3.1. art. 236 da
CF/88. 3.2. EC 45/04 e seu impacto. 3.3. Legislação infraconstitucional
relevante.
4.
Categorias de desjudicialização no ordenamento
jurídico brasileiro 4.1. Desjudicialização para notários e registradores. 4.2.
Desjudicialização para pessoas jurídicas sem fé pública: uma
inconstitucionalidade manifesta.
5.
Análise jurídica comparativa: questões
probatórias e segurança jurídica 5.1. O regime jurídico dos atos dotados de fé
pública. 5.2. Atos praticados por entidades sem fé pública: vulnerabilidades.
5.3. Impactos processuais e ônus da prova.
6.
Riscos e consequências da desjudicialização
inconstitucional 6.1. Insegurança jurídica e vulnerabilidade intrínseca dos
procedimentos. 6.2. Efeito paradoxal: aumento da judicialização a posteriori.
6.3. Impactos econômicos e sociais.
7.
Experiências concretas e casos paradigmáticos
7.1. Casos bem-sucedidos: desjudicialização para notários e registradores. 7.2.
Casos problemáticos: desjudicialização para entidades sem legitimação
constitucional. 7.3. O caso da lei 14.711/23: um potencial agravamento do
problema.
8.
Conclusão.
9.
Referências.
1. Introdução
A desjudicialização representa um fenômeno jurídico
contemporâneo caracterizado pela transferência de determinados procedimentos,
anteriormente de competência exclusiva do Poder Judiciário, para outras
instâncias e agentes. Este movimento surge como resposta à crescente demanda
por celeridade e eficiência na resolução de conflitos e na efetivação de
direitos, em um contexto de sobrecarga do aparato jurisdicional brasileiro
(RIBEIRO, 2013, p. 43).
Conforme observa Pedroso (2002, p. 17), a desjudicialização
constitui "um movimento de transferência de competências processuais e
procedimentais dos tribunais para outras instâncias de natureza pública ou
privada". Este fenômeno se insere em um contexto mais amplo de
transformações do sistema de justiça, visando superar entraves estruturais que
comprometem a efetividade da prestação jurisdicional.
O presente trabalho visa analisar criticamente este
movimento no ordenamento jurídico brasileiro, com especial atenção às suas
bases normativas, evolução histórica e implicações jurídicas. Busca-se,
particularmente, estabelecer uma distinção fundamental entre a
desjudicialização realizada para agentes dotados de fé pública, notadamente
notários e registradores, e aquela direcionada a entidades privadas desprovidas
desta prerrogativa, examinando as consequências jurídicas desta diferenciação.
A hipótese central que orienta esta investigação é a de que
a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela que transfere
procedimentos para agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle do
Poder Judiciário, em conformidade com o modelo estabelecido pelo art. 236 da
CF/88. Em contrapartida, a delegação de funções judiciais a entidades privadas
sem estas características representaria uma violação ao sistema constitucional
de segurança jurídica, com potenciais efeitos deletérios para a administração
da justiça e para a garantia dos direitos dos cidadãos.
2. Origens e evolução histórica da desjudicialização
no Brasil
A desjudicialização no Brasil começou a ser implementada de
forma mais estruturada a partir da década de 1990, intensificando-se nos anos
2000, como resposta a múltiplos fatores convergentes que evidenciavam a
necessidade de reformulação do sistema de administração da justiça.
Segundo Mancuso (2015, p. 27), este movimento teve como
impulsionadores principais:
"A crise de efetividade do sistema judicial brasileiro,
marcada pela morosidade processual, alto custo operacional, formalismo
excessivo e distanciamento da realidade social, criou o ambiente propício para
a busca de alternativas à jurisdição estatal tradicional."
Watanabe (2011, p. 5) complementa que a "cultura da
sentença" predominante no Brasil, caracterizada pela excessiva
judicialização de conflitos, contribuiu significativamente para a sobrecarga do
aparato jurisdicional, tornando imperativa a adoção de mecanismos alternativos
para a composição de litígios e para a realização de atos jurídicos.
Cronologicamente, podem-se identificar marcos significativos
deste processo, conforme detalhado por Rodrigues e Ferreira (2013, p. 112-134):
·
Década de 1990: Primeiras iniciativas pontuais
de desjudicialização, como o reconhecimento de paternidade extrajudicial (lei
8.560/1992) e os procedimentos extrajudiciais de alienação fiduciária (lei
9.514/1997);
·
Anos 2000: Consolidação do movimento,
especialmente após a EC 45/04, com destaque para a lei 11.441/07, que
possibilitou a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios
consensuais pela via extrajudicial;
·
Anos 2010 até o presente: Ampliação e
aprofundamento das hipóteses de desjudicialização, com novos marcos normativos
como o CPC/15 (lei 13.105/15), a lei de mediação (lei 13.140/15), a lei de
regularização fundiária (lei 13.465/17) e, mais recentemente, a lei 14.711/23,
que ampliou significativamente as hipóteses de busca e apreensão extrajudicial.
Esse movimento progressivo de transferência de competências
foi impulsionado por estudos e diagnósticos que apontavam para a
insustentabilidade do modelo exclusivamente judicializado. Como observa
Cappelletti (1988, p. 71), "o movimento de desjudicialização se insere no
contexto da terceira onda de acesso à justiça, caracterizada pela busca de
procedimentos mais acessíveis, simples e racionais".
É importante notar, entretanto, que esta evolução histórica
não ocorreu de maneira uniforme ou sistemática. Ao contrário, como ressalta
Brandelli (2016, p. 45), "a desjudicialização no Brasil caracteriza-se por
um desenvolvimento fragmentado e nem sempre coerente, reflexo da ausência de
uma política judiciária articulada e de uma compreensão clara dos limites
constitucionais deste movimento".
Esta observação é particularmente relevante quando se
considera que, especialmente nas iniciativas mais recentes, tem-se verificado
uma tendência de desjudicialização para além dos parâmetros constitucionais do
art. 236, com a delegação de funções a entidades desprovidas de fé pública e
não submetidas ao controle do Poder Judiciário, tendência essa que suscita os
questionamentos críticos que este trabalho pretende aprofundar.
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Fonte: Migalhas
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