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Artigo - Atualização das certidões: Segurança jurídica no casamento civil
Por Rudyard Rios
O artigo analisa a razão jurídica e prática da
exigência de certidões atualizadas para casar-se no civil, destacando a função
estatal de controle e segurança do estado civil.
Durante muito tempo, o Estado brasileiro não teve
instrumentos eficazes para controlar o estado civil real das pessoas. Alguém
podia contrair matrimônio em um cartório de São Paulo, mudar-se para Goiás e,
anos depois, casar-se novamente sem que houvesse comunicação entre os
registros. O país, em suma, não sabia quem estava casado.
Essa ausência de integração entre os registros civis
permitiu que a boa-fé de muitos nubentes e a má-fé de outros convivessem sob o
mesmo sistema. Hoje, com o avanço da informatização e o fortalecimento da
atividade registral, o cenário mudou: o Estado passou a exigir certidões
atualizadas, de nascimento ou de casamento, antes da habilitação para o novo
matrimônio civil.
O que pode parecer um simples detalhe burocrático é,
na verdade, um marco silencioso na consolidação da segurança jurídica familiar
brasileira.
Da fé pública à interoperabilidade: O novo
controle estatal sobre o estado civil
Antes do provimento 46/15 e, especialmente, do
provimento 63/17 do CNJ, cada cartório funcionava quase como uma ilha de
informações. A lei 6.015/1973 (lei de registros públicos) sempre determinou a
necessidade de apresentação de certidão de nascimento (art. 1.525, II, do CC),
mas não havia um prazo uniforme de validade nem um banco de dados nacional.
Isso começou a mudar com a criação da CRC Nacional -
Central de Informações do Registro Civil, administrada pela ARPEN-Brasil, que
possibilitou o intercâmbio eletrônico entre serventias de todos os estados. A
partir daí, tornou-se possível verificar se o registro de nascimento ou
casamento já contém anotações supervenientes, como divórcios, óbitos ou
reconhecimentos de paternidade.
Trata-se, portanto, de uma mudança de paradigma: o
Estado, que antes atuava apenas formalmente, passa agora a exercer um controle
substancial do status civil, garantindo que ninguém possa se casar novamente
sem comprovar a inexistência de vínculo matrimonial anterior.
A exigência da certidão atualizada:
Fundamento jurídico e prático
O CC, em seu art. 1.525, exige que os nubentes
apresentem suas certidões de nascimento e a declaração de inexistência de
impedimentos. Por sua vez, o art. 67 da lei 6.015/1973 dispõe que os registros
públicos devem conter todas as anotações pertinentes aos atos da vida civil,
inclusive casamentos e dissoluções.
A atualização das certidões é o que garante a
autenticidade dessas informações. Na prática, a maioria dos cartórios de
registro civil exige que as certidões apresentadas tenham sido expedidas nos
últimos seis meses. Esse prazo não decorre de lei expressa, mas de orientações
das corregedorias estaduais e dos provimentos da atividade notarial e
registral, que visam assegurar que o documento reflita fielmente o estado civil
atual da pessoa.
Como lembra Zeno Veloso, "o registro civil é
o espelho da vida jurídica da pessoa natural; mas, como todo espelho, precisa
estar limpo para refletir a verdade" (Direito Civil: Família e Sucessões,
2020). Essa "limpeza" é exatamente o papel da certidão atualizada.
Certidão de casamento com averbação do
divórcio: Requisito indispensável
No caso de pessoas divorciadas, não basta
apresentar a certidão de casamento antiga. É necessário que a certidão esteja
atualizada com a averbação do divórcio, feita pelo mesmo cartório em que o
casamento foi registrado. Somente a certidão com essa averbação comprova,
perante o Estado, que o vínculo conjugal anterior foi juridicamente dissolvido.
Sem essa anotação, o registro civil considerará que o
casamento ainda subsiste e o novo casamento não poderá ser habilitado. A
ausência dessa averbação é uma das principais causas de indeferimento de
habilitação matrimonial em todo o país, e sua exigência está respaldada nos
arts. 10 e 29, §1º, da lei de registros públicos, bem como em reiteradas
orientações do CNJ e das corregedorias estaduais.
Averbar o divórcio é, portanto, um dever de quem se
divorcia e um direito de quem deseja recomeçar a vida com segurança jurídica.
Prevenção de fraudes e proteção de
terceiros
A exigência de certidões recentes é também uma medida
de proteção de terceiros de boa-fé. Em matéria de estado civil, não há espaço
para presunções subjetivas: ou se é casado, ou não se é. E essa certeza só pode
ser extraída do documento público devidamente atualizado.
A jurisprudência do STJ é firme ao exigir documentos
recentes para comprovação do estado civil. No REsp 1.604.700/SC, o tribunal
decidiu que "o estado civil é fato jurídico que deve ser provado por
documento público atualizado, de modo a evitar fraudes e garantir segurança nas
relações familiares e patrimoniais".
A bigamia, ainda que rara, continua sendo
juridicamente relevante e penalmente tipificada (art. 235 do CP). Mas, mesmo
fora do âmbito criminal, a duplicidade de vínculos matrimoniais gera sérios
conflitos sucessórios, previdenciários e registrais. A exigência da certidão
atualizada funciona, assim, como uma vacina preventiva contra fraudes e
incertezas jurídicas.
Uma política pública de integração e
cidadania
A atualização documental é também um reflexo da
política pública de integração dos registros civis, cujo objetivo é ampliar o
acesso da população à cidadania formal. A informatização não se limita à
prevenção de fraudes: ela cria um mapa civil único, permitindo ao Estado
conhecer melhor sua própria população.
O CNJ, por meio do Programa "Registro Civil
Nacional", vem integrando os bancos de dados de nascimento, casamento
e óbito a outros sistemas públicos, como o CPF e o título de eleitor. Essa
integração fortalece a atuação do Juiz de Paz, do oficial de registro
civil e do Ministério Público, garantindo que o ato do casamento seja
não apenas celebrado, mas também verificado e autenticado à luz da verdade
registral.
Como destaca Maria Berenice Dias, "a família
é o espaço onde o Estado mais se aproxima do indivíduo; por isso, o dever de
zelar pela veracidade dos vínculos é forma de proteger a própria
cidadania" (Manual de Direito das Famílias, 2022).
Ao exigir certidões atualizadas, o Estado cumpre esse
papel de forma silenciosa, mas eficaz.
O juiz de paz e o dever de fiscalização
O juiz de paz, figura tradicional e muitas vezes
esquecida, é o primeiro agente público a verificar a higidez documental dos
nubentes. Sua atuação é essencial para a legalidade do casamento civil,
conforme prevê o art. 1.514 do CC e o art. 38 da lei 6.015/1973.
Quando o Cartório ou juiz de paz exige uma certidão
recente ou verifica a averbação de um divórcio, ele não está impondo uma
barreira burocrática, mas cumprindo uma função constitucional de garantia do
estado civil legítimo. A cerimônia que ele conduz é o ponto final de um
processo administrativo de habilitação que começa no cartório, mas termina na
fé pública do magistrado leigo.
Como observa o jurista José de Oliveira Ascensão,
"o estado civil é um status jurídico, não uma declaração de vontade;
depende de reconhecimento público" (O Direito: Introdução e Teoria Geral,
2018). É exatamente esse reconhecimento público que a atuação do juiz de paz e
do registrador civil concretiza.
Conclusão: Amor com responsabilidade
jurídica
Casar-se é, antes de tudo, um ato de fé na vida em
comum. Mas, sob a perspectiva do Direito, é também um ato formal e solene, que
depende da clareza documental para produzir efeitos legítimos.
A exigência de certidões atualizadas, expedidas, em
regra, nos últimos seis meses, e a apresentação da certidão de casamento com a
devida averbação do divórcio, quando houver, não são entraves ao amor, mas
formas de proteger a história que o casal está prestes a escrever.
O Estado, que antes desconhecia seus casados, hoje
pode reconhecê-los, identificá-los e protegê-los. É a vitória da organização
sobre o improviso, da transparência sobre a incerteza e, em última
análise, da segurança jurídica sobre o caos do anonimato civil.
Em resumo, a atualização das certidões antes de um
novo casamento é o modo pelo qual o Estado garante que cada "sim"
pronunciado perante o juiz de paz seja verdadeiro, único e juridicamente
válido.
Fonte: Migalhas