Notícias
Artigo - Cartórios como agentes de proteção patrimonial: entre a função registral e o dever de cautela social
Por Gabriel de Sousa Pires
Introdução
A violência patrimonial é uma das formas mais
silenciosas - e muitas vezes naturalizadas - de violação de direitos praticada
contra mulheres e idosos no Brasil. Longe dos holofotes das agressões físicas
ou verbais, ela opera com sutileza e aparente legalidade: doações forçadas,
procurações obtidas sob coação, transferências patrimoniais com vícios de
vontade e atos praticados em evidente estado de vulnerabilidade.
Nesse cenário, os cartórios não são apenas receptores
de declarações de vontade formalmente manifestadas, mas atores institucionais
com capacidade - e dever - de exercer cautela social. Investidos da função
pública de conferir segurança jurídica aos atos da vida civil, os notários e
registradores atuam como verdadeiros guardiões da legalidade, da boa-fé
objetiva e da dignidade da pessoa humana.
A crescente judicialização de atos extrajudiciais
viciados por coação ou fraude tem evidenciado um ponto crítico: a mera
aparência de legalidade não basta. Quando o agente delegado presencia sinais
concretos de abuso, a omissão pode se transformar em conivência jurídica - com
impactos graves e irreversíveis para o patrimônio e a vida de pessoas
vulneráveis.
Este artigo propõe uma reflexão sobre o papel dos
cartórios como agentes de proteção patrimonial, discutindo os limites da
atuação notarial e registral diante de situações de suspeita, os fundamentos
jurídicos do dever de cautela, os riscos de responsabilização por omissão, e
boas práticas que vêm sendo adotadas por delegatários em diferentes partes do
país.
A violência patrimonial: conceito, números
e perfis de vulnerabilidade
A violência patrimonial é uma forma específica de
abuso que atinge diretamente a autonomia e a dignidade da vítima, com impactos
muitas vezes mais duradouros que a violência física. Segundo a Lei Maria da
Penha (lei 11.340/2006), ela se configura como "qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos econômicos". No Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), tal violência
também é reconhecida como grave violação de direitos fundamentais.
Na prática, trata-se de um fenômeno com múltiplas
faces: filhos que convencem pais idosos a transferirem imóveis com base em
laços afetivos e promessas vazias; maridos que retiram bens comuns do casal e
forçam a dependência econômica; familiares que forjam documentos para se
apropriar de heranças ou pensões. Em todos esses casos, há um denominador
comum: o esvaziamento do poder de autodeterminação da vítima, quase sempre em
situação de vulnerabilidade física, emocional ou informacional.
Dados do governo federal apontam que os idosos são as
maiores vítimas desse tipo de violência no Brasil, com destaque para os casos
de retenção de cartões bancários, desvio de aposentadorias e transferências de
bens imóveis feitas sob pressão psicológica. Já entre as mulheres, o ciclo de
violência doméstica frequentemente inclui o controle financeiro e a supressão
da independência patrimonial como mecanismos de dominação.
Casos recentes com grande repercussão pública, como o
da atriz Larissa Manoela - que denunciou o controle total de seus bens pelos
próprios pais - evidenciam que a violência patrimonial não se restringe a
populações de baixa renda ou sem acesso à educação formal. Ela atravessa
classes sociais, assume roupagens variadas e se esconde por trás de laços
familiares, afetivos e de confiança.
A maior parte dos atos de violência patrimonial é
formalizada, ironicamente, dentro da legalidade aparente - com escrituras
públicas, registros de imóveis ou procurações lavradas e registradas sem
qualquer resistência institucional. É nesse ponto que os cartórios se tornam
peças-chave: são eles que, muitas vezes, testemunham os sinais de abuso antes
de qualquer outra autoridade pública. Se houver silêncio institucional nesse
momento, o dano pode se consumar com aparência de legalidade - mas com vício insanável
de origem.
O notário e o registrador como
"gatekeepers" da legalidade e da boa-fé
No Brasil, os cartórios exercem uma função pública por
delegação do Estado. Embora frequentemente percebidos como simples entes de
formalização documental, os serviços notariais e de registro possuem, em sua
essência, uma função protetiva e preventiva de altíssima relevância social. São
responsáveis por conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia aos
atos jurídicos - e, mais que isso, por zelar pela higidez da vontade
manifestada.
Ao lavrar uma escritura ou registrar um título, o
delegatário não é um espectador passivo. Ele atua como guardião da legalidade e
da boa-fé objetiva, devendo verificar se os requisitos formais e materiais do
ato estão presentes e se há vícios evidentes que comprometam sua validade. Essa
responsabilidade é ainda mais acentuada quando estão em jogo atos com impacto
patrimonial significativo - como a doação de bens imóveis, lavratura de
testamentos, outorga de procurações amplas ou renúncia de direitos.
Em contextos de vulnerabilidade - como no atendimento
a idosos com sinais de confusão mental ou a mulheres acompanhadas de pessoas
que tomam a palavra em seu nome - a função do notário e do registrador se
amplia da legalidade formal para a cautela ética e social. Nesses casos, o que
está em jogo não é apenas a técnica jurídica do ato, mas a própria integridade
da vontade manifestada.
Nesse sentido, o delegatário atua como um verdadeiro
"gatekeeper" (guardião de acesso) - expressão consagrada na
literatura estrangeira para designar profissionais que exercem uma função de
filtro entre a legalidade e a moralidade social. Seu papel não é julgar, mas
perceber, questionar, interromper e, se necessário, recusar ou postergar o ato
até que a vontade se mostre de fato livre, consciente e informada.
O Provimento nº 149/2023 do CNJ, por exemplo, ao
tratar da atuação extrajudicial em casos envolvendo crianças e adolescentes em
situação de acolhimento, reforça esse dever ampliado de zelo com a parte
vulnerável, evidenciando uma tendência de evolução da função extrajudicial para
além da mera formalização. Essa lógica pode e deve ser aplicada, por analogia,
a outros grupos vulneráveis, como idosos e mulheres em contextos de dependência
emocional ou financeira.
Ignorar sinais de manipulação ou coação pode,
portanto, representar não apenas falha ética, mas também responsabilidade jurídica.
Afinal, quem presencia o ato e chancela sua validade, mesmo diante de
indicativos de vício, pode ser chamado a responder civil e até disciplinarmente
por omissão gravosa.
Quando desconfiar? Sinais práticos de
coação e abuso
A atuação proativa do notário ou registrador em
situações de suspeita não exige dotes investigativos ou bola de cristal - exige
atenção, sensibilidade profissional e compromisso com a função pública que
exerce. A coação raramente se apresenta em forma explícita. Ela se manifesta
por gestos, olhares, silêncios constrangedores, discursos ensaiados e
contradições. Saber reconhecer esses sinais é tão essencial quanto saber lavrar
uma escritura pública.
Algumas situações demandam atenção redobrada:
Presença de acompanhantes que se sobrepõem à vontade
do outorgante: quando o interessado é impedido de responder por si mesmo, sendo
interrompido ou substituído em sua fala por filhos, cônjuges ou terceiros que
"explicam" o que ele quer dizer. Em muitos casos, a própria linguagem
corporal do acompanhante transmite domínio ou controle sobre a situação.
Idosos em estado de aparente confusão, apatia ou
desconexão com o ato: pessoas que demonstram não compreender a extensão
patrimonial do que estão fazendo ou que revelam surpresa com a leitura do ato.
Frases como "ah, eu achei que era só pra facilitar", "foi meu
filho que pediu" ou "me disseram que era o melhor a fazer"
indicam ausência de compreensão plena.
Contradições internas entre o conteúdo do ato e as
manifestações verbais: por exemplo, uma doação integral de bem imóvel a um
único herdeiro, quando o declarante diz "vou fazer isso só pra facilitar a
administração, mas é de todos os filhos". A divergência entre a intenção
declarada e o efeito jurídico do ato deve acender o alerta.
Situações inusitadas ou fora do padrão para o perfil
do outorgante: lavratura de procuração amplíssima por idoso sem instrução
formal, testamento de última hora feito sob pressão hospitalar, venda de imóvel
abaixo do valor de mercado por parte de pessoa em visível fragilidade
emocional.
Pressa injustificada ou resistência à leitura integral
do documento: quando os interessados pressionam pela assinatura imediata,
recusam a leitura pública ou demonstram impaciência com explicações técnicas,
há forte indício de que a formalização está sendo usada apenas como meio de
legitimar uma vontade já distorcida.
É claro que nenhum desses sinais, isoladamente, prova
a existência de coação. Mas a presença de dois ou mais deles em um mesmo
atendimento deve levar o agente a parar, repensar e agir com prudência
reforçada. A dúvida razoável, nesse contexto, não é fraqueza: é um indício de
que o dever de cautela precisa se sobrepor à rotina cartorial.
Suspender o ato, solicitar documentação complementar,
exigir atendimento reservado ou até sugerir a presença de um curador ou
defensor público são medidas preventivas legítimas - e, em muitos casos,
absolutamente necessárias.
O que fazer? Boas práticas e protocolos de
proteção
Detectar sinais de coação ou vulnerabilidade é apenas
o primeiro passo. A responsabilidade institucional do cartório não se encerra
na percepção do risco - ela se projeta sobre a atitude tomada diante do risco.
É nesse ponto que entram as boas práticas, os protocolos internos e a
consciência de que a função notarial e registral pode ser exercida com zelo sem
se tornar arbitrária.
Aqui estão algumas diretrizes já adotadas por
cartórios modelo no Brasil e que podem servir de referência:
1. Suspensão cautelar do ato
Se houver dúvida relevante quanto à manifestação de
vontade, o ato pode (e deve) ser suspenso. A suspensão não é negativa, mas ato
de prudência administrativa, especialmente em escrituras de doação, procurações
irrestritas ou renúncias patrimoniais. O registrador ou tabelião deve
formalizar a justificativa em termos objetivos, com base nos sinais
identificados.
2. Atendimento reservado
Quando possível, o atendimento à parte vulnerável deve
ocorrer sem a presença de terceiros. Isso permite ao delegatário verificar a
espontaneidade da manifestação de vontade, sem interferência de acompanhantes.
Em muitos casos, o simples ato de ficar a sós com o outorgante revela
constrangimentos ocultos ou vícios latentes.
3. Registro interno de atendimento atípico
Cartórios que prezam pela cautela mantêm registros
próprios de atendimentos incomuns - como uma espécie de relatório confidencial
sobre o que motivou a suspensão, a recusa ou a postergação de um ato. Essa
prática não só preserva o delegatário contra acusações futuras, como demonstra
diligência objetiva.
4. Sinalização a órgãos competentes
Quando houver suspeita concreta de abuso reiterado -
especialmente em relação a idosos - o cartório pode encaminhar comunicação ao
Ministério Público, à Defensoria Pública ou aos conselhos tutelares (em caso de
incapazes). Não se trata de denúncia formal, mas de dever cívico e funcional de
proteção da parte vulnerável, nos termos da legislação protetiva.
5. Protocolo mínimo de avaliação de risco
Cartórios podem (e deveriam) estabelecer protocolos
internos padronizados, com um checklist de indícios de coação e critérios para
acionar medidas preventivas. Isso garante segurança jurídica ao ato e evita
decisões arbitrárias.
6. Capacitação continuada da equipe
Escreventes, substitutos e demais atendentes precisam
estar aptos a reconhecer sinais de abuso, saber como agir e quando escalar o
atendimento ao tabelião ou oficial. Cartórios socialmente responsáveis
capacitam sua equipe com noções básicas de vulnerabilidade, violência
patrimonial e atendimento humanizado.
Responsabilidade do notário/registrador: Limites e
fundamentos
A atuação dos delegatários não é apenas uma função
pública delegada pelo Estado - é também uma função técnica sujeita a
responsabilidade civil, disciplinar e, em certos casos, até criminal. A ideia
de que o cartório é uma "caixa registradora da vontade alheia" já foi
superada há muito. O notário e o registrador têm o dever jurídico de recusar
atos que ofendam a legalidade, a moralidade e a boa-fé objetiva.
Ato jurídico formal não é sinônimo de ato
jurídico válido
Muitos atos viciados por coação ou simulação passam
ilesos pela lavratura cartorial porque aparentam legalidade formal. No entanto,
a jurisprudência brasileira já consolidou que a forma não convalida a vontade
viciada. Assim, se o tabelião presencia indicativos de vício e ainda assim
chancela o ato, pode ser responsabilizado pelos danos daí decorrentes.
Responsabilidade civil do delegatário
A responsabilidade civil pode emergir quando a omissão
ou a conduta negligente do cartório concorre diretamente para a lesão
patrimonial sofrida pela vítima. Exemplo: se um tabelião lavra escritura de
doação de imóvel por uma idosa de 92 anos, visivelmente confusa, sem leitura
prévia e sem atendimento reservado, e depois se comprova que a vontade foi
induzida ou simulada, há nexo causal claro entre a omissão funcional e o dano
causado.
A indenização pode envolver perdas patrimoniais
diretas (ex: valor do bem alienado), lucros cessantes e até danos morais -
tanto da vítima quanto, eventualmente, de herdeiros prejudicados.
Responsabilidade disciplinar
O Código de Normas das corregedorias estaduais, em
geral, impõe ao notário e ao registrador o dever de zelar pela autenticidade,
legalidade e segurança dos atos, podendo responder administrativamente por
omissões, atos contrários ao interesse público ou que afrontem os princípios da
função pública.
Suspensões, multas e até perda da delegação podem ser
aplicadas em casos graves de conivência com atos ilegítimos, especialmente
quando se comprova que o delegatário teve condições de agir e preferiu o
silêncio conveniente.
Limites da responsabilidade
Claro: o delegatário não tem poder investigativo nem
pode presumir má-fé sem fundamento. Sua responsabilidade não é objetiva, mas
sim baseada na existência de sinais concretos de irregularidade que foram
ignorados sem justificativa plausível. Ou seja: a exigência é razoável e
compatível com sua formação técnica e atribuições legais.
Fundamentação jurídica do dever de cautela
Princípio da legalidade e da boa-fé objetiva (CC, art.
422).
Poder-dever de recusa de atos ilegais ou abusivos
(art. 30 da lei 8.935/94).
Função social do serviço notarial e registral.
Dever de indenizar por omissão culposa (arts. 186 e
927 do Código Civil).
Princípio da dignidade da pessoa humana como valor
estruturante da atuação registral.
Em resumo: o preço da omissão pode ser alto - e não só
para a vítima, mas para a própria credibilidade institucional do serviço
extrajudicial. Proteger a vontade livre, informada e legítima não é ato de
coragem heroica, mas sim obrigação funcional de quem exerce a fé pública.
Conclusão
Em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais
e relações de poder nem sempre visíveis, os cartórios ocupam uma posição
estratégica e insubstituível: são pontos de contato direto entre o Estado e o
cidadão no exato momento em que decisões patrimoniais ganham forma jurídica.
Esse poder, legitimado pela fé pública, carrega consigo uma responsabilidade
proporcional.
A violência patrimonial contra mulheres e idosos,
embora muitas vezes travestida de legalidade, revela-se como grave violação de
direitos fundamentais - e, não raro, tem início ou se concretiza com a chancela
de atos notariais e registrais. Por isso, ignorar sinais de abuso é mais do que
omissão: é abdicar da função social que sustenta o próprio serviço
extrajudicial.
Cartórios que atuam com prudência, escuta ativa,
atendimento humanizado e protocolos preventivos não estão extrapolando sua
função - estão cumprindo seu dever com excelência e dignidade institucional.
A formação humanista dos delegatários, o estímulo à
capacitação das equipes, a padronização de boas práticas e o diálogo com o
Ministério Público e a Defensoria são caminhos possíveis, reais e já em
andamento em algumas serventias modelo do país. Falta, ainda, ampliar essa
consciência para além das exceções - transformando o zelo com a parte
vulnerável de boa prática em padrão de atuação.
A Constituição da República, ao consagrar a dignidade
da pessoa humana e a função social da propriedade como fundamentos da ordem
jurídica, impõe ao Estado e a seus delegatários a obrigação de atuar com mais
do que técnica: exige cautela ética, escuta ativa e compromisso com o bem
comum.
É tempo de reconhecer: o cartório é, sim, um agente de
proteção patrimonial. E negar esse papel é fechar os olhos para o futuro do
próprio serviço extrajudicial.
Referências bibliográficas
Ministério Público do Estado do Mato Grosso. Violência
patrimonial: entenda o que é e como afeta a vida de muitas mulheres. Disponível
aqui.
IBDFAM. Caso Larissa Manoela: especialista explica o
que caracteriza a violência patrimonial. Disponível aqui.
Conselho Nacional de Justiça. Revista CNJ - artigo
sobre cartórios e vulnerabilidade. Disponível aqui.
Casa Civil da Presidência da República. Violência
patrimonial e financeira: pessoas idosas são as maiores vítimas no Brasil.
Disponível aqui.
Agência Brasil. OAB alerta para o aumento de violência
patrimonial contra idosos. Disponível aqui.
Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas,
desde que cite o link:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/434744/cartorios-como-agentes-de-protecao-patrimonial
Fonte:
Migalhas.