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Artigo - Estamos aqui
Por Roberta Corrêa Vaz de Mello
Nos últimos meses, as conversas, presenciais e digitais têm
sido dominadas por um assunto: o filme Ainda Estou Aqui. Em linhas gerais, o
filme narra a história da família Paiva e os horrores enfrentados durante a
ditadura. Eunice Paiva protagoniza a saga familiar em busca de respostas e
justiça pela prisão e desaparecimento de seu marido, Marcelo Rubens Paiva, que
foi sequestrado, preso, torturado e morto.
O filme evidencia como a prisão e o
"desaparecimento" - termo que coloco entre aspas por não se tratar de
um desaparecimento propriamente dito - permeiam de maneira cruel a dinâmica
dessa família ao longo dos anos.
Um dos pontos altos do filme - e da própria trajetória da
Eunice Paiva - é o momento em que a viúva recebe, quase 25 anos após a prisão
do marido, a certidão de óbito. No registro do óbito, encontra-se o elemento
simbólico: diante da ausência do corpo, é o registro no livro que concretiza o
fim.
O luto e sua vivência são questões trans-históricas,
atravessam o tempo. Ainda na Grécia Antiga, no século V a.C., Sófocles narrava,
em Antígona, a história de uma mulher que reivindicava o direito natural de
enterrar seus mortos. Dois mil e quinhentos anos depois, como se o tempo não
tivesse passado, Eunice Paiva e tantas outras mulheres continuam reivindicando
do Estado o direito de velar e sepultar seus mortos.
Mais do que um direito hoje positivado, trata-se de uma
marcação simbólica. Eunice, uma Antígona do mundo contemporâneo, exige justiça,
insta que o Estado brasileiro reconheça a tortura, o sequestro e a ocultação de
cadáver.
Segundo a psicanalista Maria Homem, aquilo que permanece
inimputável, sem julgamento, nunca pode ser elaborado. E o que não pode ser
elaborado retorna como repetição, como pulsão de morte, culminando na ideia de
que se pode confiar no poder da força e na idealização de um passado que
seria...
Aqui, permito-me um breve retorno ao direito positivado. A
lei 9.140/95 reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de
participação, ou acusação de participação, em atividades políticas. Nos termos
do art. 3º da referida norma, o cônjuge, companheiro(a), descendente,
ascendente ou colateral até o quarto grau pode requerer ao oficial de registro
civil de seu domicílio a lavratura do assento de óbito. Recentemente, em 2024,
o CNJ publicou a resolução 601, que dispõe sobre o dever de reconhecer e retificar
os assentos de óbito de todas as pessoas mortas e desaparecidas vítimas da
ditadura militar. Conforme a resolução, as lavraturas e retificações dos
assentos de óbito devem ser baseadas nas informações constantes do Relatório
Final da Comissão Nacional da Verdade, sistematizadas na declaração da CEMDP -
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e direcionadas aos
cartórios de registro civil.
Observe que, em ambas as normas, os pedidos são encaminhados
para os ofícios de registro civil. Nesses casos, para além do múnus legal, o
registro civil atua no campo simbólico.
A certidão de óbito representa um corpo e escancara o luto
que tantas famílias não puderam vivenciar no tempo oportuno. O registro do
óbito é o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da violência imposta a essas
pessoas e a suas famílias. Eis a marcação simbólica abre caminho para não
repetição.
Nós, registradores, representamos, com o fruto do nosso
ofício, a concretização de direitos - inclusive o direito de enterrar os
mortos.
E que possamos nos lembrar diariamente da nossa principal
atividade: concretizar os direitos fundamentais. Estamos aqui!
Fonte: Migalhas