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Artigo - Infidelidade financeira no casamento e na união estável - Por Mário Luiz Delgado
Fidelidade tem origem no latim fidelis, no sentido
ser fiel, leal, constante e verdadeiro, ao passo que a infidelidade
significa a qualidade de quem é infiel, ausência de probidade, traição,
perfídia [1].
Na seara do direito privado, duas situações de infidelidade
eram especialmente apenadas: a do depositário infiel e a dos cônjuges
adúlteros.
A prisão civil do depositário foi considerada
inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao
ingresso do Pacto de São José da Costa Rica no direito nacional [2],
subsistindo, apenas, a responsabilização civil [3] pelos danos que a sua
infidelidade causar a terceiros.
E o adultério foi descriminalizado pela Lei nº
11.106/2005, que revogou o artigo 240 do Código Penal. Atualmente, as únicas referências
legislativas expressas à fidelidade como dever jurídico encontram-se nos
artigos 1.566 e 1.576 do CCB, referentes ao dever de fidelidade recíproca entre
os cônjuges, desde a celebração do casamento até a data da separação de fato e
cujo mero descumprimento não gera danos de qualquer natureza [4].
O dever de fidelidade no casamento (e que se
equipara ao de lealdade, na união estável) significa e exige dos parceiros
conjugais serem leais e fieis, um ao outro, nos planos físico e moral, e o seu
descumprimento ocorre pela traição dessa confiança, quer seja pela prática de
atos de conteúdo sexual, com ou sem conjunção carnal, quer pelo envolvimento em
atividades românticas ou emocionais, com terceiros alheios à sociedade conjugal
e sem o conhecimento ou o consentimento do outro cônjuge.
A fidelidade no plano físico não se coaduna mais
com a exigência pretérita da manutenção de relações sexuais exclusivamente com
o outro cônjuge. O dever de fidelidade (e também o de lealdade) será cumprido
ainda que os cônjuges mantenham relacionamentos extraconjugais paralelos ou
simultâneos ao casamento, desde que isso faça parte do pacto de conjugalidade
ou de convivência estabelecido entre o casal, sendo expressamente "defeso
a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de
vida instituída pela família" (CCB, artigo 1.513). Também não é de se
confundir fidelidade com monogamia, a que se opõem a bigamia e a poligamia,
caracterizadas pela simultaneidade de mais de um casamento ou de um matrimônio
entre mais de duas pessoas [5].
Por outro lado, depois que a EC 66/2010 extirpou a
culpa da separação e do divórcio, extinguindo as sanções civis pela violação
dos deveres matrimoniais, a infidelidade física entre cônjuges e companheiros
perdeu qualquer protagonismo no direito de família. Em processos litigiosos de
dissolução conjugal ou convivencial, praticamente, não se discute mais se um ou
outro foi infiel, questão que se resume, quando muito, a alegações em tom de
desabafo ou de agressão de uma das partes contra a outra e que são completamente
desconsideradas pelos juízes.
Nesse contexto, uma outra modalidade de
infidelidade ganhou destaque: a infidelidade financeira, consistente na traição
da confiança por parte daquele que detém a administração do patrimônio comum,
mediante uso de ferramentas jurídicas para evitar ou fraudar o pagamento da
meação devida ao outro cônjuge ou convivente, em decorrência do regime de bens
de natureza comunitária (comunhão parcial ou universal). Esse tipo de conduta,
independentemente das sanções aplicadas à fraude, caracteriza violação ao dever
de fidelidade, no plano moral [6].
Diversos são os mecanismos previstos na legislação
e utilizados nos atos de infidelidade financeira, com o intuito de fraude, como
é o caso das sociedades de "fachada", com sócios aparentes e sócios
de fato, criadas para acolher bens desviados do acervo comum partilhável, o que
tem pavimentado o uso da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
inversa, com muita ênfase nos litígios de família, de modo a que o patrimônio da
pessoa jurídica possa fazer frente a obrigações dos sócios de fato ou de
direito.
Como forma de escapar ao incidente de
desconsideração, com frequência, o trust do direito anglo-americano vem sendo
utilizado para burlar os direitos de cônjuges e companheiros [7].Ficou famosa
entre nós uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a utilização de trust
como instrumento de fraude à lei, no caso de um político que havia afetado o
patrimônio para a formação de um trust em jurisdição estrangeira, estipulando-se,
em seguida, como seu único beneficiário. Não é incomum que o direito
empresarial, por meio do uso abusivo da sociedade e contra os seus princípios,
propicie uma indesejada desobediência às normas de ordem pública.
Igualmente comuns situações de atos simulados
praticados com o fito de prejudicar a meação. Um dos exemplos mais visualizados
na prática da advocacia é o de um bem comum, vendido a interposta pessoa por
preço vil, com o intuito de retirá-lo da futura partilha, e, após o divórcio, é
alienado "de volta" ao ex cônjuge pelo terceiro adquirente.
Em se tratando de ativos digitais, a infidelidade
financeira tem se tornado cada vez mais sofisticada, com cônjuges e
companheiros, em processo de planejamento para a dissolução conjugal, valendo-se
de criptomoedas e propriedades no metaverso para ocultar da futura partilha
bens comuns sujeitos à comunhão.
Recentemente, foi noticiado na imprensa o caso de
uma dona de casa americana cujo ex-marido havia ocultado cerca de US$ 2,3
milhões em uma conta na coinbase durante o processo de divórcio. As moedas
foram transferidas para endereços fora da coinbase em várias transações,
dificultando a recuperação desses ativos, segundo afirma a reportagem [8].
Ainda assim, apesar da complexidade do rastreamento
de criptomoedas em casos de fraude à partilha, os advogados estadunidenses
conseguiram, mediante intimação de corretoras centralizadas e análise forense
de dispositivos eletrônicos, como computadores e celulares, identificar
endereços de carteira, possibilitando a investigação na blockchain. O passo
seguinte foi a obtenção de uma ordem judicial para a divulgação das informações
da conta da coinbase e o rastreamento dos endereços para onde os bitcoins foram
transferidos.
O caso teve final feliz (para a mulher), que
recuperou os bitcoins desviados, mas poderia ser o contrário, pois é possível
guardar criptomoedas em locais que não podem ser rastreados.
[1] Cf. Enciclopédia Saraiva do Direito.
Coord. Limongi França, São Paulo, Saraiva, 1.977, v. 1., p. 139.
[2] Súmula Vinculante nº 25: É ilícita a prisão
civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.
[3] CPC, artigo 161. O depositário ou o
administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte,
perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada, mas tem o direito a haver o que
legitimamente despendeu no exercício do encargo. Parágrafo único. O depositário
infiel responde civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo de sua
responsabilidade penal e da imposição de sanção por ato atentatório à dignidade
da justiça.
[4] RESPONSABILIDADE CIVIL. Adultério. Dano moral.
Não ocorrência. Mera violação do dever de fidelidade, sem que seja dada
visibilidade proposital e com intuito difamante, do que não decorre a dever de
reparar o abalo que possa ter sido ocasionado por essa conduta. Honorários
advocatícios sucumbenciais que devem. Guardar razoabilidade e
proporcionalidade, consoante o artigo 8º do CPC/2015. Recurso provido em parte.
(TJSP; AC 1000432-45.2015.8.26.0238; Ac. 13138809; Ibiúna; Quarta Câmara de
Direito Privado; relator desembargador Alcides Leopoldo; Julg. 02/12/2019;
Djesp 05/12/2019; Pág. 2904).
[5] A monogamia não é um princípio de direito
estatal, mas uma característica histórica, sociológica e cultural do Direito de
Família ocidental e, ao mesmo tempo, uma regra proibitiva de múltiplas relações
matrimonializadas.
[6] A infidelidade no plano moral, ainda que muitas
vezes não esteja adequadamente aparelhada com sanções eficazes, é objeto de
arraigado juízo de reprovabilidade social.
[7] O trust é uma criação do direito
anglo-americano e constitui espécie do gênero negócio fiduciário, na medida em
que o fiduciante (settlor), transmite, em fiducia, a titularidade formal
(trust-ownership) do patrimônio (trust fund) ao fiduciário (trustee), com a
obrigação de custodiá-los ou administrá-los, estabelecendo a obrigação do
trustee retransmiti-los, verificada condição ou termo, ao beneficiário indicado
no ato de constituição do trust . Propicia a transferência do domínio
resolúvel e da posse indireta dos bens ao trustee, resolvendo-se o direito
deste com a verificação da condição ou do termo. O trustee adquire a
propriedade dos bens transmitidos, mas não é proprietário pleno. Apenas detém
propriedade resolúvel que, por sua vez, confere-lhe todos os direitos de dono,
ainda que seja temporariamente. Cf. CHALHUB, Melhim Namem. Alienação
fiduciária- negócio fiduciário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 17.
[8] Disponívell em <
https://livecoins.com.br/marido-esconde-milhoes-em-bitcoin-durante-o-divorcio/amp/>
Acesso em: 07/06/2023.
Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de
Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em
Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil
Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos
Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do
Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de
Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro
(IDCLB).
Fonte:
ConJur