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Artigo - LGPD exige distinção entre a publicidade notarial e a publicidade registral - por Karin Regina Rick Rosa
A aplicação
da Lei Geral de Proteção de Dados nos cartórios tem gerado polêmicas e uma das
principais, sem dúvida, é as certidões. Não é por acaso. A expedição de
certidões por notários e registradores é atribuição prevista no artigo 6º da
lei 8.935/94 e no artigo 19 da lei 6.015/73, respectivamente. São as certidões
as responsáveis por suscitar o aparente conflito entre a publicidade e o
direito fundamental à proteção de dados pessoais. Muitas dúvidas são
levantadas, e a implementação normativa geralmente impacta no modo de proceder
cotidiano dos agentes notariais e registrais.
Embora
privacidade e intimidade fossem protegidas originariamente pela Constituição
Federal, a proteção de dados pessoais passou a integrar o rol de direitos e
garantias fundamentais ao cidadão a partir da promulgação da Emenda
Constitucional 115/2022. De acordo com a Autoridade Nacional de Proteção de
Dados - ANPD, "a importância dos direitos à privacidade e proteção de
dados estar elencado no artigo 5º da Constituição Federal é que os direitos
fundamentais são garantias com o objetivo de promover a dignidade humana e de
proteger os cidadãos. O direito à privacidade e à proteção de dados pessoais é
essencial à vida digna das pessoas, principalmente nesse contexto de total
inserção na vida digital.[1]"
O
reconhecimento específico da proteção dos dados pessoais como direito
fundamental busca garantir que as condições para desenvolvimento da construção
da personalidade estejam protegidas. Para Ingo Sarlet e Giovani Agostini
Saavedra, "as várias novas tecnologias, que ampliam as possibilidades de
exposição, troca e tratamento de dados, somente serão legítimas se não
desnaturarem a base do Direito, que é a autodeterminação livre, que se expressa
por meio da vontade"[2].
O direito à
proteção de dados pessoais pode ser associado a alguns princípios e direitos
fundamentais de caráter geral e especial, como o princípio da dignidade da
pessoa humana, o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade,
o direito geral de liberdade e os direitos à privacidade e à intimidade. Para
Ingo Sarlet, o fundamento constitucional que mais se aproxima ao da proteção de
dados pessoais é "o direito ao livre desenvolvimento da personalidade,
radicado diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito
geral de liberdade".[3] Na nova concepção da digital person, a proteção
dos dados pessoais está relacionada ao livre desenvolvimento e determinação da
personalidade, diretamente vinculada à proteção da personalidade, porém
autônoma, enquanto direito fundamental relacionado à privacidade entendida em
seu conceito clássico do the right to be left alone.
Com o objetivo
de tutelar a garantia fundamental à proteção dos dados pessoais, a lei
13.709/18 estabeleceu que as atividades de tratamento de dados pessoais deverão
observar a boa-fé e mais dez princípios, entre eles o da finalidade, adequação
e da necessidade. A própria lei, no artigo 6º explica o significado de cada um
deles. O princípio da finalidade determina que o tratamento dos dados pessoais
tenha um propósito legítimo, específico e explícito, que precisam ser
informados ao titular. O princípio da adequação se relaciona à compatibilidade
do tratamento com as finalidades informadas, de acordo com o contexto. E o
princípio da necessidade, também denominado de princípio da minimização, limita
o tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com a
abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às
finalidades do tratamento de dados. Esses três princípios estão interligados
pelo princípio da proporcionalidade.
Enfrentar
esta polêmica pode ser uma oportunidade especial de distinguir noções e separar
conceitos básicos, o que, ao final, facilitará sobremaneira a atuação cotidiana
dos serviços notariais e registrais resultando em mais segurança e proteção
social. Como será demonstrado, o conflito entre os direitos de proteção aos
dados pessoais e a publicidade (registral e das formas notariais) é, de fato,
apenas aparente, e isso decorre das dimensões distintas entre a publicidade
notarial e registral, e da necessidade de conjugação dos princípios da Lei
Geral de Proteção de Dados com o direito de acesso a informações sob a guarda
dos notários e registradores.
Iniciando
pelos notários, o inciso II do artigo 6º da Lei 8.935/94 dispõe que compete a
eles "intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou
queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os
instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas
de seu conteúdo".
Historicamente,
os tabeliães de notas exercem a função de redatores e conservadores dos
documentos que consignam a manifestação da vontade dirigida a criar, modificar
ou extinguir direitos. Como consequência da atribuição de guarda e conservação
dos documentos, está a expedição de cópias fidedignas do conteúdo desses instrumentos
públicos. Os artigos 217 do Código Civil e 425, II do Código de Processo Civil
determinam que as certidões extraídas dos instrumentos arquivados pelo tabelião
terão a mesma força probante que os originais. Nestes documentos constam, pelo
menos, três modalidades distintas de dados: os pessoais (geolocalização,
endereço, número de documentos privados, dados fiscais, dados bancários, entre
outros, que inclusive poderão ser sensíveis), os referentes ao próprio negócio
jurídico (dados que descrevem a forma de criação, extinção e modificação de
direitos) e os incidentais (dados que eventualmente sirvam à conservação de
informações relevantes atuais ou a serem comprovadas no futuro, tais como
consensos compartilhados sobre temas, declarações recíprocas, condições
especiais de realização do ato/negócio).
O
instrumento é público porque redigido e conservado por um agente público - que
é o notário, também incumbido de expedir as certidões, e é preciso ressaltar
que a lei não diz a quem essas certidões se destinam, diferentemente do que
acontece com as certidões expedidas por registradores públicos. A Lei de
Registros Públicos - Lei 6.015/73, em seus artigos 16 e 17, assim dispõe:
Art. 16.
Os oficiais e os encarregados das repartições em que se façam os registros são
obrigados:
1º a
lavrar certidão do que lhes for requerido;
2º a
fornecer às partes as informações solicitadas.
Art. 17.
Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou
ao funcionário o motivo ou interesse do pedido. (...)
Uma primeira
leitura dos dispositivos já revela que a extensão da publicidade registral é
muito mais ampla do que a notarial. Registradores públicos são obrigados a
lavrar certidões do que lhes for requerido (objeto mais amplo) e a fornecer às
partes as informações solicitadas (não apenas dos atos de registro em sentido
amplo por eles praticados). Na sequência, o legislador deixa expressa a certeza
de que a publicidade registral se destina a qualquer pessoa, que, sequer
precisará informar o motivo ou o interesse do pedido (ponto sobre o qual se
pode levantar dúvidas a partir da vigência da necessária proteção de dados e
dos direitos fundamentais, mas que não tratarei neste momento). De outro lado,
é importante repetir que em momento algum a lei 8.935/94 determina a expedição
de certidões pelo notário a qualquer pessoa, tampouco existe previsão legal do
fornecimento de certidão de outras informações que estejam sob a guarda do
notário, o que limita o objeto das certidões aos atos protocolares. Até aqui,
as diferenças já são notáveis.
Isso porque
a publicidade notarial atua em plano distinto do da publicidade registral. Ela
é requisito de validade de certos atos jurídicos, conforme dispõe o artigo 104,
III, do Código Civil. Nas oportunidades em que houver a forma pública exigida
pela lei, como por exemplo nos artigos 108 e 1.653 do Código Civil, o
instrumento terá que ser redigido por agente público - o notário. A regra geral
dos atos e negócios jurídicos entre particulares é a liberdade de conformação.
A forma pública é exceção, diante do princípio da liberdade de forma consagrado
no artigo 107 do Código Civil, e a publicidade notarial recai sobre a forma do
negócio jurídico, porque compõe o seu núcleo de instrumentalização para acessar
ao plano da validade do ato. Não há dúvidas quanto à existência, o plano de
atuação da publicidade notarial é o da validade. Pelo instrumento público,
pessoas, físicas ou jurídicas, privadas ou entes públicos, criam, modificam ou
extinguem direitos subjetivos de natureza pessoal, cujos efeitos jurídicos se
irradiam inter partes. (Para fins de adequação técnica, esclarece-se que os
direitos reais exigirão título e modo para fazer frente aos planos de
existência, validade e eficácia).
Totalmente
distinto é o âmbito de incidência da publicidade registral, que pode atuar
sobre os dois outros planos, como elemento integrativo do suporte fático.
Somente se pode afirmar a existência do direito subjetivo apontado se cumpridas
as formalidades específicas de lei para isso, o que inclui o registro. Exemplo
disso, é o direito real sobre os bens imóveis que somente ocorre mediante o
registro do título junto ao Registro de Imóveis, e a própria existência da
pessoa jurídica, que depende do registro no Registro Civil das Pessoas
Jurídicas ou no Registro Público de Empresas Mercantis. Ademais, opera em outro
plano, o da eficácia, mais precisamente, pois, capaz de agregar uma eficácia
extraordinária ao ato jurídico. Da publicidade registral decorre a
oponibilidade, o efeito erga omnes, tornando o ato jurídico cognoscível a
todos, e por isso é pressuposto o seu acesso ilimitado. É certo que o
registrador público também é agente público, afinal, o artigo 236 também define
a sua atividade como pública, delegada e com exercício em caráter privado.
Então, é possível afirmar que para os registradores públicos a publicidade
assume uma função tríplice, atuando no plano da existência, da eficácia e
garantindo a presença do Poder Público no ato de registro.
Entendida a
diferença entre as publicidades, não é descabido afirmar que a expedição de
certidões de que trata o artigo 6º da Lei 8.935/94 se destina às partes que
figuram no instrumento público, não havendo sequer previsão de fornecimento a
outras pessoas. Se até bem pouco tempo essa ideia parecia não fazer sentido,
pois na prática o fornecimento de certidões sempre se deu de modo indistinto e
sem questionamentos por notários e registradores, a Lei Geral de Proteção de
Dados trouxe uma nova dimensão à questão, que precisa ser compreendida por
todos que participam do sistema extrajudicial, principalmente diante do novo
procedimento que se impõe para o fornecimento de certidões pelos notários.
Não se pode
associar a expedição de uma cópia do inteiro teor (possível de ser entregue às
partes ou aos seus procuradores) com o fornecimento da certidão adequada à
LGPD. Esta última constitui-se verdadeiro serviço novo da atividade notarial,
criado e exigido pela LGPD, porque envolve custo operacional novo, estrutura
nova e procedimento específico para avaliação e validação, verificando se é
possível ou não, e em quais limites pode ser expedida a certidão requerida pela
parte. Por ser expediente novo, vai precisar ser regulada pelo Conselho
Nacional de Justiça e Corregedorias, a fim de que se atualize a tabela de
emolumentos com a previsão do procedimento, pois não se trata de uma simples
certidão. Não é, e nem pode ser confundida como tal.
Considerando
que expedir certidões - devidamente adequadas à LGPD - é uma operação de
tratamento de dados pessoais, pois por meio dela os dados do titular são
transmitidos, compartilhados, distribuídos, utilizados, para citar algumas das
operações previstas no artigo 5º, a partir da vigência da Lei Geral de Proteção
de Dados, um novo procedimento para expedição de certidões de adequação se
torna imperioso para atender ao disposto no artigo 21 do Provimento CNJ n.
134/2022:
Art. 21.
Na emissão de certidão o Notário ou o Registrador deverá observar o conteúdo
obrigatório estabelecido em legislação específica, adequado e proporcional à
finalidade de comprovação de fato, ato ou relação jurídica.
Parágrafo
único. Cabe ao Registrador ou Notário, na emissão de certidões, apurar a
adequação, necessidade e proporcionalidade de particular conteúdo em relação à
finalidade da certidão, quando este não for explicitamente exigido ou quando
for apenas autorizado pela legislação
específica.
Daí decorre,
seguramente, que a expedição de certidões como antes se fazia, somente será
possível aos titulares de dados, ou aos seus procuradores. Quaisquer outros
requerimentos, não são meras certidões, mas requerimento específico ao notário
de um procedimento especial, que exige análise, validação de fundamentos
materiais pelos quais se requer o acesso aos dados pessoais e, após isso,
adaptação à LGPD, eventualmente omitindo dados pessoais e incidentais, para
então ser extraída a certidão adequada. O custo operacional para realização
deste processo é completamente diferente da extração simples de certidões e vai
precisar ser fixado pelos órgãos competentes, a partir da compreensão de que há
um processamento envolvido, com avaliação de razões e atividades artesanalmente
realizadas pelo notário, com comprometimento de tempo de funcionário
devidamente especializado e qualificado.
A adoção de
um procedimento específico sempre que as certidões não forem expedidas para os
próprios titulares a quem os dados se referem, ou seu representante, vai muito
além de um novo termo ou nova designação para tratar das certidões. De fato, há
uma verdadeira mudança de paradigma, no sentido de que não devem ser admitidos
dados pessoais irrelevantes transitando na sociedade da informação, com
potencial à violação de direitos fundamentais.
Quando
Conselho Nacional de Justiça dispõe que cabe ao registrador ou ao notário, na
expedição de certidões, apurar a adequação, necessidade e proporcionalidade de
particular conteúdo em relação à finalidade da certidão, está determinando que
o pedido de certidão de um ato lavrado no tabelionato de notas deve instaurar
um procedimento, que como tal, desenvolve-se em pelo menos quatro etapas
distintas:
Etapa 1 -
Requerimento escrito pela parte interessada, que deverá ser identificada e
deverá informar os motivos (justificativa) pelo qual deseja ter acesso ao
conteúdo do instrumento público.
Etapa 2 -
Análise do pedido pelo tabelião ou seu preposto, para verificar, mediante a
aplicação dos princípios da finalidade, da necessidade e da adequação quais
informações constarão da certidão a ser expedida.
Etapa 3 -
Tratamento do documento originário, a fim de que a certidão a terceiros não
contenha dados excessivos ou desproporcionais às finalidades contidas na
solicitação.
Etapa 4 -
Expedição da certidão adequada, observados os limites da Lei Geral de Proteção
de Dados.
Isso não
significa que terceiros estranhos ao ato notarial estão impedidos de ter acesso
ao conteúdo, mas que deverão identificar-se e justificar o seu pedido,
demonstrando interesse jurídico em sentido lato e permitindo que o notário
forneça apenas os dados necessários à finalidade indicada, nada a mais e nem a
menos.
Tem-se um
verdadeiro procedimento novo: protocolo, instauração do procedimento, avaliação
do pedido, tratamento do documento originário e expedição da certidão. E isso
significa dizer que é evidente que o novo procedimento exigirá tempo e atenção
do notário maiores do que a expedição de certidão aos próprios titulares de
dados, que pode ser inclusive por cópia reprográfica do ato arquivado no livro,
ou impressão do ato arquivado eletronicamente.
Em
conclusão, de forma a atender a lei 10.169/2000, deverão ser previstos
emolumentos para este procedimento, com valores que correspondam ao efetivo
custo operacional elevado e à adequada e suficiente remuneração dos serviços
prestados. Afinal, é consenso que a Lei Geral de Proteção de Dados não veio
para impedir o desenvolvimento de nenhuma atividade econômica, mas para tutelar
uma garantia fundamental de todo cidadão, que é a proteção de seus dados
pessoais.
__________
[1] Proteção
de Dados Pessoais agora é um direito fundamental. Disponível aqui. (Acesso
em 01.06.2023)
2 Sarlet,
Ingo Wolfang e Saavedra, Giovani Agostini. Proteção de Dados e Inteligência
Artificial: Perspectivas Éticas e Regulatórias. RDP, Brasília, Volume 17, n.
93, 33-57, mai/jun.2020, p. 39. Disponível aqui. (Acesso
em 4 junho 2023)
[3] Sarlet,
Info Wolfgang. O Direito Fundamental à Proteção de Dados Pessoais na
Constituição Federal Brasileira de 1988. Privacy and Data Protection Magazine -
Revista Científica na área jurídica, n. 01, 2021, online. Disponível aqui. (Acesso
em 4 junho 2023)
Fonte: Migalhas