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Correio Braziliense - Meu nome é orgulho: como o direito ao registro em cartório trouxe cidadania
Dados da Associação Nacional dos Registradores de
Pessoas Naturais do Brasil calculam 49 retificações nos cartórios da capital do
país, em 2021 e em 2022, cada. Especialistas destacam importância social da
modificação
Ter em seu
documento o gênero e o nome com o qual você se identifica tem valor especial.
Desde 2018, O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece esse direito que, por
meio do Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), autorizou os
cartórios a realizarem a troca para brasileiros LGBTQIAP+
. Nos cinco anos em que está em vigor, ao menos 241 pessoas no Distrito Federal
conseguiram a mudança e, agora, podem ser chamadas, também, em seus registros,
da maneira como elas se sentem realmente representadas.
Os dados
são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais
(Arpen-Brasil), que calculou 49 trocas no documento de identificação nos
últimos dois anos.
Embaixadora
da Parada do Orgulho LGBTQIAP , que ocorre amanhã em frente ao Congresso
Nacional, a apresentadora de eventos Scarlety Pereira Furtado, 29 anos,
colaborou com esses números. Em setembro de 2022, ela fez a retificação no 3º
Ofício de Notas de Brasília, localizado no Setor Comercial Sul (SCS). Ela fez a
troca do gênero masculino para o feminino. "Fiquei super emocionada porque
é muito ruim quando você chega em um lugar com nome masculino e as pessoas fazem
questão de falar seu nome (antigo) em alto e bom som", desabafa.
A mudança
de nome é maior do gênero masculino para o feminino. Foram de 18 para 21
trocas, entre 2021 e 2022. Um crescimento de 16,6% no período. Para a alteração
em seu documento, Scarlety procurou ajuda no Centro de Referência Especializado
da Assistência Social, na L2 Sul. Conhecido como Crea da Diversidade, por meio
dele, a mulher trans conseguiu o custeio das taxas em forma de auxílio social.
Mesmo com a
conquista, ela ainda enfrenta empecilhos no dia a dia, como ocorreu mês passado
na Rodoviária do Plano Piloto, onde ela teve que mostrar o RG a um segurança
para poder usar o banheiro feminino. "As que mais sofrem dentro desse
segmento (público LGBTQIAP ) são as mulheres e homens trans, que somos um dos
que são mais mortos todos os dias. Mais campanhas sobre isso seria importante
para as pessoas mudarem o nome", opina Scarlety.
Capacitação
O diretor
de registro civil da Associação de Notários e Registradores do Brasil
(Anoreg-BR) Devanir Garcia adianta que a instituição desenvolve o programa de
capacitação Cartório Plural, a ser lançado ainda neste mês de julho — sem data
programada. O objetivo da proposta, com divulgação de cartilhas e guias, é
capacitar funcionários cartoriais de todo o país a lidarem de forma mais
inclusiva com as demandas do público trans. "Esses materiais fornecem um
passo a passo detalhado sobre o procedimento legal para a mudança de gênero,
orientando sobre a documentação necessária, os trâmites a serem seguidos e os
direitos garantidos por lei", explica Garcia.
O diretor
acredita que a facilidade em conseguir a troca de nome, respeitando o gênero
com o qual elas se identificam, ajudará aquelas pessoas que ainda sofrem com a
falta de reconhecimento a procurarem as instâncias competentes para a
mudança. "Quanto mais a possibilidade da mudança ser feita em
cartório, que é um procedimento mais simples, rápido e desburocratizado, maior
a probabilidade das pessoas saberem que esse procedimento se tornou muito mais
fácil do que era antigamente", analisa o membro da Anoreg-BR.
Tragédia
A realidade
de óbitos diários citada por Scarlety se reflete no levantamento do Grupo Gay
da Bahia (GGB), que coleta dados com base em notícias públicas nos meios de
comunicação. A pesquisa, de 2022, traz que ao menos 256 lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transgêneros foram vítimas de morte violenta no ano
passado. Isso equivale a uma morte a cada 34 horas no país, segundo o GGB. São
242 homicídios e 14 suicídios no período. Dessas vítimas, 134 eram gays (52%) e
110 travestis ou transexuais (43%).
Enquanto a
realidade ainda vitimiza esse grupo social, a presidente da Comissão de
Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil do DF (OAB-DF), Cíntia
Cecílio, acredita que a decisão de 2018, do STF, garantiu o direito de troca de
gênero e nome direto no cartório, trouxe liberdade e facilidade para a
população transsexual. "Até então, era mais burocrático e era preciso usar
meios judiciais para a retificação, tendo que comprovar que ter feito a
cirurgia de redesignação sexual, além de laudos psiquiátricos e
psicológicos", explica a advogada.
Caso o interessado
seja hipossuficiente, com poucos recursos econômicos, pode solicitar gratuidade
dos custos da retificação. Cíntia menciona que a mudança de nome não é
obrigatória nos casos de mudança de gênero nos documentos. A retificação pode
ocorrer tanto do masculino para o feminino quanto ao contrário. De acordo com a
jurista, no caso das pessoas não-binárias, que não se vêem pertencentes a um
gênero em exclusivo, ainda não é possível fazer a retificação diretamente no
cartório.
Alívio
Mari
Delgado Ferreira, 24 anos, foi uma das pessoas trans do DF que entraram com o
processo de retificação de nome e gênero, concluído em setembro do ano passado,
conquista que ela considera um alívio. "Agora, eu posso chegar aos lugares
e não ser chamada pelo antigo nome do registro civil. Mesmo com o nome social
no documento, eu ainda era chamada pelo nome morto (anterior) em alguns
lugares, até mesmo em órgãos públicos", lembra Mari.
No entanto,
a estudante de serviço social lembra que, após a retificação, é preciso ir
atrás de mudar todos os outros documentos, o que ela garante ter feito.
"Agora, ninguém mais tem acesso ao meu nome antigo, só o cartório e a
Polícia Civil", diz.
Para alívio
maior de outras pessoas transsexuais, além de Mari, com todas as documentações
e certidões apresentadas, a mudança de gênero pode ser concluída no mesmo dia.
É o que afirma o presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas
Naturais, Gustavo Fiscarelli. Para ele, possibilitar que uma pessoa se
identifique da forma como se sente é uma conquista deste segmento da população.
"A alteração de nome e gênero é um procedimento rápido", diz.
Fiscarelli
alerta que algumas pessoas ainda acham que a alteração só pode ser feita pela
via judicial, com apresentação de laudos médicos e cirurgia. Mas, desde 2018, o
procedimento pode ser feito pela via extrajudicial, no cartório, de forma
rápida e desburocratizada. "O que notamos no dia a dia é que a mudança de
gênero é como uma espécie de renascimento, um reconhecimento daquilo que elas
sempre foram", avalia.
A produtora
cultural Carol Ribeiro, 30, teve esse sentimento de identificação com o próprio
gênero, que também é determinante para usar passaporte e resolver problemas com
a polícia. "Tudo isso está certificado e me coloca em um lugar que me identifico
no mundo. Deviam ter mais campanhas de orientação em relação à questão do nome
também, porque faz toda a diferença para evitar evasão escolar das pessoas
trans. Isso significa muito", garante.
Para
retificar o gênero em cartório, em setembro de 2020, a influência não veio de
amigos ou de campanhas, mas da mãe. Segundo ela, a progenitora não a deixava
sossegada enquanto a filha não fizesse a mudança de designação do gênero e nome
em cartório. "Ela sabia que isso iria mudar a minha vida. Em 2019 e em
2020, até fiz campanha para a Câmara Legislativa do DF sobre respeito ao
público LGBTQIAP . Então, acho que devem ter mais (campanhas), porque faz toda
a diferença", conclui.
Fonte: Correio Braziliense