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29 de Setembro de 2020

IBDFAM - Filha vítima de abandono consegue excluir nome escolhido pelo pai; especialistas comentam princípio da imutabilidade

Abandonada pelo pai ainda na infância, uma mulher conquistou o direito de alterar seu registro para retirada de nome dado por ele. A maioria da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ deu provimento ao recurso especial interposto por Maria Lúcia (nome fictício adotado nesta matéria para preservar a identidade), que ajuizou ação para excluir o prenome Maria, porque a constrange e a faz lembrar do genitor.

Segundo relato nos autos, após o nascimento da filha, o pai se comprometeu em registrá-la como Lúcia, mas chegou em casa levando o registro incluindo o prenome Maria. Em primeiro grau, o pedido para alteração foi deferido, mas o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT reformou a decisão.

Ao analisar o caso, os magistrados entenderam que a autora não comprovou a notoriedade do nome social, sobretudo com depoimento de testemunhas, tampouco o constrangimento real por seu uso cotidiano. O prenome Maria, por si só, não justifica o pleito, no entendimento apresentado em segunda instância.

Para o STJ, contudo, as exceções ao princípio da imutabilidade do nome expressas na Lei de Registros Públicos (6.015/1973) são meramente exemplificativas. É possível que o juiz responsável determine a modificação se entender que existe o constrangimento. A análise indubitavelmente subjetiva deve ser realizada sob a perspectiva do próprio titular do nome.

Constrangimento pode ter causas diversas

O relator, ministro Antonio Carlos Ferreira, destacou que o constrangimento em razão de nome pode ter causas diversas. Para Ferreira, o TJDFT “limitou-se a elogiar o nome”. Destacou, em seu voto, que a autora é conhecida em meio social e profissional exclusivamente como Lúcia. A exclusão do prenome Maria, não causaria prejuízo à identificação familiar, já que o sobrenome será mantido, sem evidência de má-fé ou prejuízo de terceiros.

O voto foi acompanhado pelos ministros Luís Felipe Salomão e Isabel Gallotti. Já Marco Buzzi divergiu: para ele, o acórdão recorrido deixou claro que não existem provas suficientes para configurar a excepcionalidade necessária para permitir a mudança no registro civil. Não houve sequer comprovação de que o prenome Maria foi dado pelo genitor.

Segundo Bruzzi, alterar essas conclusões esbarraria na Súmula 7 do próprio STJ, que impede reanálise de provas. Mera alegação, desacompanhada de outros elementos, não é suficiente para afastar o princípio da imutabilidade, sob pena de se transformar a exceção em regra, de acordo com o ministro.

Lei de Registros Públicos

Já o ministro Raul Araújo, que também divergiu do relator, chamou a atenção para os critérios elencados na Lei de Registros Públicos: casos excepcionais e fundamentados ou situações como fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime. Ele ressaltou a necessidade de higidez na análise desses casos para impedir que não ocorra de forma indiscriminada.

Em seu voto, o relator destacou que o artigo 56 da norma supracitada admite a modificação do prenome em circunstâncias menos rigorosas do que a relatada. Ele afirma que é possível fazer a mudança em até um ano após completar 18 anos de idade, “desde que não prejudique os apelidos de família”, sem quaisquer outros requisitos.

Além disso, Ferreira observou que a Lei de Registros é de 1973, quando a imutabilidade dos nomes era necessária para conservar a segurança jurídica das relações. De acordo com o ministro, o nome deixou de ser o único ou o principal recurso de identificação com o advento da tecnologia. Cedeu espaço para formas mais eficientes, como identificação numérica ou digital, por imagem e em redes sociais.

“Nome que lembra desamor resulta em peso terrível”, comenta jurista

O jurista Zeno Veloso, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, observa que a escolha do nome é uma tradição, fato que se impõe aos recém-nascidos, mas pressupõe a afetividade. “Carregar um nome que lhe é repugnante, que lhe lembra o desamor, a falta de apoio, a agressão ou mesmo o abuso, deve ser um peso terrível, esmagador”, comenta.

Além do caso solucionado pelo STJ, ele opina que também possa ser feita a exclusão de sobrenome, caso também esteja relacionado a sofrimento. “Acredito que deve sim ser autorizada a alteração para excluir o nome da família que de família não tem nada. É o nome que oprime, envergonha e maltrata. Temos que livrar um ser humano desse opróbrio e a Justiça pode facilitar.”

O especialista destaca a importância de, mesmo nesses casos, abrir o contraditório. “Deve-se ter indícios, provas, para que não se tome apenas a palavra de uma das partes. Fora isso, sou plenamente de acordo que os tribunais façam uma interpretação construtiva e teleológica das leis, como tem sido em matéria de nomes”, afirma.

“A jurisprudência é fartíssima sobre alteração e composição de nome, porque à medida que evolui no país a questão dos direitos da personalidade, o nome, talvez o principal testemunho desse direito, passa a ser muito mais questionado”, pontua Zeno Veloso.

Direito à personalidade

Membro da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM, Thomas Nosch Gonçalves também elogia a decisão. “Logo de início, é importante estabelecermos o nome civil da pessoa natural como um direito à personalidade que deve ser analisado pelo vetor axiológico da dignidade da pessoa humana, conforme a Constituição Federal”, diz.

“Nossa Lei de Registros Públicos, como exposto no STJ, é de 1973, um outro momento de identificação civil. Há ainda outros recursos, como o Cadastro de Pessoa Física - CPF, de identificação da pessoa natural para que não haja eventuais fraudes contra credores ou prejuízos a terceiros”, acrescenta Nosch.

Ele destaca que, no caso em tela, o CPF da autora da ação continuará o mesmo. Além disso, não foi identificada qualquer situação que possa prejudicar eventuais terceiros. “A decisão não traz insegurança jurídica. Ao contrário, concretiza direitos fundamentais das pessoas que realmente tem desconforto ou não são felizes em relação aquela identidade. Todos precisamos nos encontrar com nossa identidade.”

Releitura do princípio da imutabilidade de alteração de nome

Segundo Thomas Nosch, é matéria de suma importância a releitura da alteração de nome. “O tão famoso princípio da imutabilidade vem sendo mitigado. O princípio hoje seria da mutabilidade motivada. Diversos julgados do STJ vêm trazendo essa relativização da imutabilidade, já é um movimento quase que unânime de mitigação desse princípio”, avalia.

Conforme destacado pelos magistrados no caso analisado, a Lei de Registros Públicos prevê a possibilidade de alteração do prenome no período de um ano a partir da maioridade, sem tanta necessidade de fundamentação para essa mudança. Também expressa a possibilidade em casos de filiação socioafetiva de enteado, adoção, casamento e união estável, prenome imoral ou de exposição ao ridículo, nome notório ou pseudônimo, entre outras situações.

Nosch cita ainda o recente Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que possibilitou a alteração de prenome e gênero sem necessidade de judicialização. A Lei 9.807/1999, como outro exemplo, também garante o direito em programas especiais de proteção a testemunhas.

Ele atenta à inversão feita pelo professor Anderson Schreiber sobre abordagem dos pedidos de modificação do nome. Segundo o especialista, não é o acolhimento, mas a rejeição que depende de motivo suficiente, observando ao respeito à personalidade e à autodeterminação pessoal. Estudos e artigos recentes também atentam à necessidade de legislação específica e atualizada sobre o tema.

Segundo Nosch, a discussão perpassa a busca por felicidade e realização pessoal. “O nome deve ser adequado à identidade da pessoa. Não é a lei ou os registros que devem se curvar ao direito da pessoa humana e da sua personalidade, mas o sistema registral é que deve se coadunar a esses princípios”, acrescenta o notário.

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