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Impactos do termo declaratório da união estável no Registro de Imóveis – por Fellipe Duarte
Por fim, como se trata de
uma recente alteração legislativa, de certo se espera o amadurecimento do
instituto e de seus impactos no registro imobiliário pela doutrina e
jurisprudência.
I - Introdução
O instituto da união estável
vem sendo amplamente debatido pela comunidade jurídica. Como se não bastasse,
recentemente sua regulamentação sofreu uma modificação pela lei 14.382/22 e
pelo Provimento 141, do CNJ.
Com a alteração na
regulamentação, muitos questionamentos e críticas vieram à tona. São questões
que o tempo cuidará de maturar, certamente. Mas o que se pretende, neste breve
artigo, é tratar sobre alguns impactos dos títulos oriundos da união estável no
âmbito do Registro de Imóveis, de forma contribuir para a evolução da temática.
II - Breve Histórico da
União Estável no Brasil
Antes da promulgação da CF/88,
a união estável não possuía proteção legal. A questão era tratada como
concubinato pelo Código Civil de 1.916.
O instituto tomou novos
contornos com a Constituição Federal de 1.988, através do art. 226, §3º, que
dispôs que "para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento".
Seguindo a linha do tempo, a
lei 8.971/94 trouxe certo entendimento sobre a questão da união estável. Isto
porque, ao tratar da regulamentação do direito dos companheiros a alimentos e à
sucessão, a lei conferiu à companheira direito à alimentos, desde que
convivente há mais de cinco anos com um homem solteiro, separado judicialmente,
divorciado ou viúvo.[1]
Posteriormente, o dispositivo
constitucional relativo à união estável fora regulamentado com a vinda da lei
9.278/96, tendo reconhecido como entidade familiar a convivência duradoura,
pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de
constituição de família[2].
Assim foi, que o vigente Código
Civil trouxe um título específico ao tratar da união estável, entre os arts.
1.723 e 1.727. Com especial atenção ao que dispõe o art. 1.723, cuja
transcrição segue:
É reconhecida como entidade
familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida como objetivo de constituição de
família.
Neste sentido, em sendo a união
estável situação de fato, e não de direito, a legislação não trouxe requisito
formal para seu reconhecimento. Basta, para tanto, a comprovação dos requisitos
acima: a) convivência duradoura, pública e contínua; b) convivência com o
objetivo de constituição de família.
Em que pese a lei 9.278/96 ter
trazido a necessidade de convivência entre um homem e uma mulher, esse conceito
foi depois ampliado pela jurisprudência. Na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 132, advinda do Estado do Rio de Janeiro, o STF reconheceu
a paridade jurídica entre as uniões heteroafetivas e uniões homoafetivas.[3]
Neste sentido, foi editada pelo
Conselho Nacional de Justiça, a Resolução 175, regulando perante os registros
civis a habilitação e a celebração de casamento civil de pessoas do mesmo sexo
ou a simples conversão da união estável em casamento civil, entre pessoas do
mesmo sexo.
Diante desse contexto, a
doutrina estabelece uma breve síntese do conceito de união estável:
[...] é a relação
afetivo-amorosa entre duas pessoas, "não adulterina" e não
incestuosa, com estabilidade e durabilidade, vivendo sob o mesmo teto ou não,
constituindo família sem o vínculo do casamento civil[4]
Em sendo a união estável um
"casamento de fato", mereceu especial proteção do Estado. Assim foi
que, em 2014, o Provimento 37, do Conselho Nacional de Justiça normatizou o
instituto, tendo trazido sua padronização.
Com o passar do tempo, a
regulamentação da união estável sofreu mais uma modificação pela lei 14.382/22,
posteriormente regulamentada pelo Provimento 141, do Conselho Nacional de
Justiça, que alterou parcialmente o então Provimento 37.
Verificada essa breve questão
histórica, passa-se a tratar das habituais formas de formalização da união
estável.
II - A formalização da união
estável
Antes de discorrer sobre a
formalização da união estável, é preciso salientar de forma breve sua natureza
jurídica. A doutrina a classifica como um ato-fato jurídico[5]. Ou seja,
"há uma conduta humana (daí se falar em ato), mas o direito desconsidera a
presença de discernimento para o ato, como se o indivíduo estivesse agindo pelo
seu instinto natural, pela natureza (daí se falar em fato".[6]
Sendo assim, trata a união
estável de uma situação que, independentemente de formalização prévia, acontece.
Não sendo necessária prévia formalização, como bem explica Euclides de
Oliveira:
"A união estável é
tipicamente livre na sua formação. Independe de qualquer formalidade, bastando
o fato em si, de optarem, homem e mulher, por estabelecer vida em comum. Bem o
diz ANTÔNIO CARLOS MATHIAS COLTRO, assinalando que a união estável de fato se
instaura 'a partir do instante em que resolverem seus integrantes iniciar a
convivência como se fossem casados, renovando dia a dia tal conduta, e
recheando-a de afinidade e afeição, com vistas à manutenção da intensidade. Na
união estável basta o mútuo consentimento dos conviventes, que se presume do
seu comportamento convergente e da contínua renovação pela permanência"[7]
Em casos da não
instrumentalização prévia da união estável, sobretudo quando há interesse em
discutir partilha dos bens adquiridos em sua constância, os companheiros têm se
utilizado do poder judiciário para o reconhecimento e posterior dissolução
dessa união.
No entanto, pode ser que os
conviventes instrumentalizem sua união, sobretudo quando pretendem tratar de
regime de bens. Essa formalização, ao longo do tempo, tem mais comumente sido
realizada através da escritura pública declaratória de reconhecimento da união
estável junto ao tabelionato de notas. Justifica-se a participação do tabelião
nesse momento por conta de sua competência de formalizar juridicamente a
vontade das partes, prevista no art. 6º, I, da lei 8.935/94. Assim, nas
palavras de Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari,
[...] o notário atua de modo
preventivo, como instrumento de pacificação social, evitando litígios e acúmulo
de processos judiciais, na medida em que, de modo imparcial e com conteúdo
jurídico, instrumentaliza juridicamente a vontade das partes.[...] [8]
Desta forma, o tabelião tem
agido tanto no sentido de formalização da união estável quanto no sentido de
sua dissolução.
Há, ainda, aqueles que
formalizam a união através de um contrato particular. Situação viável, aos
olhos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.[9] Porém, não passível
de ingresso em cartório.
Como se não bastassem as formas
de instrumentalização já trazidas, recentemente a lei 14.382/22 inseriu o art.
94-A na lei 6.015/73, que, dentre outras questões, criou um novo título para a
formalização da união estável: o termo declaratório de reconhecimento e de
dissolução de união estável. Trata-se de inovação recente, que será explicitada
em seguida.
III - O termo declaratório
de reconhecimento e de dissolução de união estável
A ideia de se criar um
documento escrito que regulasse os efeitos da união estável com impactos
diretos no Registro Civil e no Registro de Imóveis não é nova. Quando da vinda
da lei 8.971/94, os vetados arts. 3º e 4º[10] daquela legislação estabeleciam essa
possibilidade. Esse documento seria um contrato com possibilidade de ingresso
no Registro Civil e, ainda, averbação no Registro de Imóveis.
No entanto, à época os
dispositivos foram vetados por serem então "contrários ao interesse
público".
Porém, com a entrada em
vigor da lei 14.382/22 e do Provimento 141, do Conselho Nacional de Justiça,
pode-se dizer que houve a criação de um novo título passível de registro no
ofício de registro civil das pessoas naturais: o termo declaratório de
reconhecimento e de dissolução de união estável. É o que se depreende da
leitura do art. 94-A da lei 6.015/73, veja-se:
Art. 94-A. Os registros das
sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos
declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras
públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos
no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou
tiveram sua última residência, e dele deverão constar:
O procedimento de registro do
novo título foi trazido tanto pelo art. 94-A quanto pelo Provimento 141, do
Conselho Nacional de Justiça, que dispôs que os títulos admitidos para registro
ou averbação[11] podem ser as sentenças declaratórias do reconhecimento e de dissolução
de união estável; escrituras públicas declaratórias de reconhecimento da união
estável; escrituras públicas declaratórias de dissolução da união estável, nos
termos do art. 733 do CPC e, por fim, os termos declaratórios de reconhecimento
e de dissolução de união estável formalizados perante o oficial de registro
civil das pessoas naturais.
O provimento 141, do Conselho
Nacional de Justiça procurou, ainda, esclarecer o que seria o termo
declaratório:
"Art. 1º-A. O título de
que trata o inciso IV do § 3º do art. 1º deste Provimento consistirá em
declaração, por escrito, de ambos os companheiros perante o ofício de registro
civil das pessoas naturais de sua livre escolha, com a indicação de todas as
cláusulas admitidas nos demais títulos, inclusive a escolha de regime de bens
na forma do art. 1.725 da lei 10.406, de 2002 (Código Civil), e de
inexistência de lavratura de termo declaratório anterior.
Trata-se, assim, de "um
documento público, registral, facultativo e autônomo[12]. As regras para sua
formalização estão também elencadas no respectivo provimento.
Uma vez lavrado o termo
declaratório, o título ficará arquivado na serventia, preferencialmente de
forma eletrônica, em classificador próprio, expedindo-se a certidão
correspondente aos companheiros.[13] Há, ainda, a obrigatoriedade da inserção
das informações de identificação do termo na ferramenta disponibilizada na CRC,
uma vez que o registrador não poderá lavrar um termo quando houver termo
anterior lavrado com os mesmos companheiros.
Para conferir efeitos jurídicos
da união estável perante terceiros[14], é necessário que o termo declaratório
seja registrado no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais. Não é demais
lembrar que o registro em questão não se restringe aos termos declaratórios.
Também podem ingressar no Livro E os demais títulos já mencionados neste
artigo.
IV - O Livro "E" e
a publicidade do registro civil
A lei 6.015/73 trouxe, em seu
art. 33, os livros do registro civil das pessoas naturais. No art. 33,
parágrafo único, trouxe a lei que "No cartório do 1º Ofício ou na 1ª
subdivisão judiciária haverá, em cada comarca, outro livro para inscrição dos
demais atos relativos ao estado civil, designado sob a letra 'E'."
Segundo Alberto Gentil,
"os registros feitos no Livro 'E' têm natureza declaratória, ou seja,
servem para dar publicidade erga omnes de atos já ocorridos na esfera de
direitos da pessoa".[15] No caso da união estável, por exemplo, a união
não se dá com o registro no Livro "E". Seu registro apenas garante publicidade
perante terceiros.
Assim, são passíveis de
registro no Livro "E" não só a união estável, como também as
emancipações, a ausência, a morte presumida, a tutela, etc. Mas como o objeto
do presente estudo é a união estável, os demais registros não serão aqui
levados em conta. Passa-se a tratar do registro dos títulos atinentes à união
estável no Livro "E".
Antes da vinda da lei 14.382/22
e de sua regulamentação pelo Provimento 141, do Conselho Nacional de Justiça,
como já mencionado, já se fazia o registro de títulos representativos da união
estável no Livro "E".
No entanto, com a vinda da nova
lei, acrescentou-se um novo título ao rol dos títulos passíveis de registro no
Livro E do Registro Civil: o termo declaratório de união estável.
O art. 94-A da lei 14.382/22,
regulamentado pelo provimento 141, do Conselho Nacional de Justiça, trouxeram
os elementos essenciais dos respectivos títulos para o registro no Livro
"E":
Art. 94-A. Os registros das
sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos
declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras
públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos
no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou
tiveram sua última residência, e dele deverão constar:
I - data do registro; II -
nome, estado civil, data de nascimento, profissão, CPF e residência dos
companheiros; III - nome dos pais dos companheiros; IV - data e cartório
em que foram registrados os nascimentos das partes, seus casamentos e uniões
estáveis anteriores, bem como os óbitos de seus outros cônjuges ou
companheiros, quando houver; V - data da sentença, trânsito em julgado da
sentença e vara e nome do juiz que a proferiu, quando for o caso;
VI - data da escritura pública, mencionados o livro, a página e o tabelionato
onde foi lavrado o ato; VII - regime de bens dos companheiros; VIII -
nome que os companheiros passam a ter em virtude da união estável.
Além de verificar a presença
dos elementos acima, o registrador civil deverá qualificar o título, à medida
que a legislação estabelece, no art. 94-A, parágrafo 1º, que a união estável de
pessoas casadas não poderá ser registrada no Livro "E". Há regra
específica, ainda, para o registro no Livro "E" dos títulos estrangeiros
de reconhecimento de união estável. Eles deverão ser devidamente legalizados ou
apostilados, acompanhados ainda de tradução juramentada, nos termos do art.
94-A, parágrafos 2º e 3º da lei 6.015/73.
Os detalhes desse registro são
relevantes. No entanto, as questões que se pretende expor são os impactos do
título da união estável no registro de imóveis.
V - Impactos da união
estável no registro de imóveis
Quando se fala em união estável
entre duas pessoas, é evidente que na maior parte das vezes essa união
impactará no patrimônio dos companheiros, notadamente no patrimônio
imobiliário.
Diante desse contexto, para
conferir segurança jurídica e oponibilidade erga omnes, é importantíssimo que
os títulos oriundos da união estável sejam registrados e averbados no registro
de imóveis.
Isso se justifica à medida que
o "efeito jurídico contra terceiro" trazido pelo art. 1º, parágrafo
1º, do Provimento 37, do CNJ difere da oponibilidade erga omnes garantida pelo
registro de imóveis, "pois não gera obrigação a terceiros de consultar a
sua base de dados"[16]. Além disso, "o Registro Civil é fragmentado,
estabelecido conforme o domicílio dos conviventes, não tendo uma base fixa e
sólida de consulta, como o Registro Imobiliário"[17]
No cartório de registro de
imóveis, assim como no cartório de registro civil das pessoas naturais, há
livros. Aqui, toma-se especial atenção aos livros números 2 e 3, que serão
elucidados em seguida.
O Livro 2 é o principal livro
do Registro de Imóveis. Destina-se à matrícula dos imóveis e aos registros e às
averbações que digam respeito diretamente a eles, que estão previstos no art.
167, I e II, da lei 6.015/73.
Com relação à união estável,
não há previsão legislativa de averbação dos títulos dela oriundos na matrícula
dos imóveis. No entanto, é preciso salientar que o rol do art. 167. II, da lei
6.015/73 é exemplificativo, como se verifica no art. 167, II, 5 da referida
legislação.[18]
Diante disso, a doutrina vem
aceitando a possibilidade de averbação da união estável na matrícula do imóvel,
veja-se:
[...] As doutrinas vêm
defendendo a possibilidade de averbação da união estável e do regime de bens na
matrícula do imóvel. Assim, ocorre a inserção e a publicação no patrimônio do
casal, da união estável constituída por eles[...]"[19]
Portanto, em que pese a
ausência de previsão legislativa, é altamente recomendável que os títulos da
união estável (tais como a escritura pública e mesmo o termo declaratório)
sejam averbados nas matrículas dos imóveis dos companheiros.
Já o livro 3, também conhecido
como Registro Auxiliar, destina-se a atos não relacionados diretamente com os
imóveis. E os títulos passíveis de registro no referido livro estão dispostos
no art. 178, da lei 6.015/73.
Os títulos relativos à união
estável também não estão expressos no rol do dispositivo acima. No entanto, os
códigos de normas estaduais têm previsto essa possibilidade.
No Estado de São Paulo, o item
78, "d", do Capítulo XX das Normas da Corregedoria Geral de Justiça
prevê a possibilidade de registro no livro 3 das convenções antenupciais e das
escrituras públicas que regulem regime de bens dos companheiros na união
estável.
A questão também foi tratada
pela normativa de Minas Gerais, no art. 826, V do Provimento Conjunto 93, da
Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais, que prevê a possibilidade de
registro das convenções antenupciais e das escrituras públicas de união estável
no livro 3 do registro de imóveis.
Neste sentido, após a
formalização da escritura pública de união estável, aconselha-se o registro do
título no Livro 3 - Registro Auxiliar e a averbação do título nos imóveis dos
companheiros, para conferir publicidade junto ao fólio real.
No entanto, como é sabido, a
criação do termo declaratório pela lei 14.382/22 e sua regulamentação pelo
Provimento 141, do Conselho Nacional de Justiça é muito recente. Razão pela
qual, até o momento da produção do presente trabalho, não foi localizada
legislação alguma prevendo a possibilidade expressa do registro e da averbação
do termo declaratório junto ao registro de imóveis.
Daí surgem os questionamentos:
o termo declaratório seria passível de registro no Livro 3 e de averbação na
matrícula dos imóveis? Em caso positivo, seria necessário o prévio registro do
termo declaratório no Livro E do Registro Civil?
No que diz respeito à entrada
do termo declaratório no registro de imóveis, seja para o registro no Livro 3,
seja para as averbações nas matrículas de imóveis, não restam dúvidas de sua
possibilidade.
O registro no livro 3 é viável,
à medida que o termo declaratório se trata de um título criado por lei e
equiparado, em sua regulamentação, aos demais títulos relacionados à união
estável. Ora, o Provimento 141, do CNJ, ao tratar dos títulos passíveis de
registro no livro E do Registro Civil, equiparou o termo declaratório aos
demais já existentes.
Neste sentido, já que a
finalidade do Livro 3 - Registro Auxiliar é a escrituração de atos que, de um
modo geral, não dizem respeito a direitos reais imobiliários, mas são atribuídos
ao registro de imóveis para constituição de direitos reais mobiliários ou para
fins de publicidade, visando a produzir efeitos em relação a terceiros, não
admitir seu registro no Livro 3 seria o mesmo que impedir sua publicidade no
registro de imóveis.
Verificado o primeiro
questionamento, passa-se a se debruçar sobre a segunda questão no tópico
seguinte.
VI - A (não) exigibilidade
do prévio registro do título da união estável no Livro "E" como
condição de entrada no registro de imóveis
Ultrapassadas as questões
acima, passa-se a verificar se seria realmente necessário o prévio registro do
título da união estável - leia-se, tanto a escritura pública declaratória
quanto o termo declaratório - no Livro "E" do Registro Civil das
Pessoas Naturais para sua aceitação no Registro de Imóveis, seja para registro
no Livro 3 Auxiliar, seja para averbações às margens das matrículas. A questão
não é pacífica.
Há quem entenda que o título
deve ser previamente registrado no Livro "E" do Registro Civil das
Pessoas Naturais, sem o qual o registrador de imóveis poderia obstar a entrada
do título no fólio real.
É o caso de decisão da
Corregedoria Geral de Justiça, no processo 118.884/17, em que o interessado
teve pedido de registro de imóvel rejeitado por não ter providenciado o prévio
registro de escritura pública de união estável junto ao Livro E, do Registro
Civil, cujo trecho vale destacar:
"[...] A lavratura de
escritura pública de união estável não passa por qualquer qualificação quanto
ao conteúdo do ato, tratando-se apenas de formalização de declaração desse
fato. Não são verificados pelo Tabelião os impedimentos legais (art. 1.723,
parágrafo 1º c.c art. 1.521, ambos do Código Civil). O Tabelião se limita a
checar a identidade dos declarantes e a transcrever as declarações por ele
prestadas acerca da configuração de união estável, início do convívio marital e
regime de bens adotado[...] Por outro lado, o Registrador Civil, ao receber a
escritura de união estável para registro no Livro E, qualifica o título, nos
termos do item 115, do Capítulo XVII das NSCGJ, somente registrando escrituras
de união estável de pessoas solteiras, divorciadas ou separadas judicial ou
extrajudicialmente."[20]
Além da ausência de
qualificação registral acima mencionada, os defensores da tese que exige o
prévio registro da união estável no Livro E o fazem baseados nos princípios da
segurança jurídica e publicidade, sob a alegação de que "na medida em que
os conviventes pretendem dar publicidade ao convívio marital, ela deve ser completa"[21].
Neste sentido, as normas de
serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, ao terem estabelecido
regras específicas[22] para o registro das escrituras antenupciais e escrituras
públicas que regulem regime de bens na união estável no Livro 3 - Registro
Auxiliar, reforçaram a ideia da necessidade do prévio registro do título no
Livro E do registro civil, conforme trecho abaixo:
83.1. O registro da convenção
antenupcial ou da escritura pública envolvendo regime de bens na união estável
mencionará, obrigatoriamente, os nomes e a qualificação dos cônjuges ou
companheiros, as disposições ajustadas quanto ao regime de bens e a data em que
se realizou o casamento ou da escritura pública, constante de certidão que
deverá ser apresentada com a escritura. Se essa certidão não for arquivada em
cartório, deverão ainda ser mencionados no registro o cartório em que se
realizou o casamento, o número do assento, o livro e a folha em que tiver sido
lavrado ou do registro da escritura envolvendo a união estável no Livro E do
Registro Civil das Pessoas Naturais.
No dispositivo acima, o trecho
"ou o registro da escritura envolvendo a união estável no Livro E do
Registro Civil das Pessoas Naturais" poderia levar o intérprete a crer que
seria necessário, para o prévio registro do título no Livro 3 do Registro de
Imóveis, o prévio registro do título no Livro E do Registro Civil.
Por outro lado, há a corrente
que defende a ideia de ser dispensável o prévio registro da união estável no
Livro E do Registro Civil para que entre no Registro de Imóveis. A ideia é
plausível e se justifica, à medida que a união estável é situação de fato. De
modo que a legislação, em momento algum, exigiu ato formal para seu
reconhecimento.
A ausência de formalismo para a
configuração da união estável é explicada de forma clara por Conrado Paulino da
Rosa:
"A informalidade é um
fator norteador da família convencional. Enquanto no casamento temos a presença
de um procedimento rígido e formalista, na união estável, por outro lado, ela simplesmente
'acontece'. Muitas vezes sequer existe a pergunta 'quer morar comigo?', afinal,
a pessoa já está morando 'contigo'"[23]
A informalidade é corroborada
pela legislação, pois os requisitos da união estável previstos no art. 1.723,
do Código Civil são: convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo
de constituir família. Repita-se: não há a necessidade de ato formal para seu
reconhecimento.
Tanto é que o provimento 37, do
Conselho Nacional de Justiça, em seu art. 1º dispôs ser facultativo o registro
da união estável no Livro E. De modo que não há como o registrador civil
exigi-lo dos interessados. Tampouco poderia o registrador de imóveis exigi-lo,
seja por ausência de disposição legislativa, seja por contradição à natureza
jurídica do instituto união estável.
Em entendimento exarado nos
autos da Apelação Cível 1044002-05.2018.8.26.0100, da Corregedoria Geral de
Justiça de São Paulo, entendeu-se pela inviabilidade do prévio registro do
título no Livro E do Registro Civil para sua entrada no registro de imóveis:
REGISTRO DE IMÓVEIS - Escritura
de compra e venda de imóvel - Compradora solteira que declara conviver em união
estável com companheiro divorciado, sob o regime da comunhão parcial de bens -
Princípio da especialidade objetiva - Apresentação de escritura declaratória de
união estável - Exigência de registro da união estável no Livro E do Registro
Civil das Pessoas Naturais e no Livro 3 (Registro Auxiliar) do Registro de
Imóveis que, no caso concreto, não se sustenta - Dúvida improcedente - Recurso
não provido.
Não custa alertar que, apesar
de as decisões trazidas se referirem à escritura pública declaratória de união
estável, deve-se estender as interpretações acima também aos termos
declaratórios trazidos pela lei 14.382/22 e pelo Provimento 141, do CNJ.
Afinal, a legislação conferiu o mesmo tratamento a ambos os títulos, uma vez
que os colocou lado a lado no rol do art. 1º, parágrafo 3º, do Provimento 37,
CNJ.
Por fim, como se trata de uma
recente alteração legislativa, de certo se espera o amadurecimento do instituto
e de seus impactos no registro imobiliário pela doutrina e jurisprudência.
----------
[1] Art. 1º, lei 8.971/94.
[2] Art. 1º, lei 9.278/96.
[3] Em voto do Ministro Ayres
Brito, então relator, entendeu-se que "essa liberdade para dispor da
própria sexualidade insere-se no rol dos direitos fundamentais do indivíduo,
expressão que é de autonomia de vontade, direta emanação do princípio da
dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea" (BRASIL. Supremo
Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132,
Rel. Min. Ayres Brito. Julgamento em plenário: 05 de maio 2011, p. 17.
[4] ROSA, Conrado Paulino da.
Direito de Família Contemporâneo. 8ª ed. ver., ampl e atual. São Paulo:
Juspodivm, 2021, P.129
[5] Para Paulo Lôbo,
"nesses atos jurídicos o sujeito tem liberdade para declará-los, mas não
para determinar seus efeitos" (A concepção da união estável como ato-fato
jurídico e suas repercussões processuais, em https://ibdfam.org.br/artigos/953/A+concep%2525252525C3%2525252525A7%2525252525C3%2525252525A3o+da+uni%2525252525C3%2525252525A3o+est%2525252525C3%2525252525A1vel+como+ato-fato+jur%2525252525C3%2525252525ADdico+e+suas+repercuss%2525252525C3%2525252525B5es+processuais
[6] OLIVEIRA, Carlos E. Elias
de. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2022, p. 247.
[7] "União Estável: do
concubinato ao casamento: antes e depois do Código Civil", 6ª Edição, São
Paulo: Editora Método, 2003, p.122.
[8] Kümpel, Vitor Frederico.
Tratado Notarial e Registral vol. III / Kümpel, Vitor Frederico et al. 1ª ed.
São Paulo: YK Editora, 2017, p. 272.
[9] PROCESSUAL CIVIL.
CIVIL. CONTRATO DE CONVIVÊNCIA PARTICULAR. REGULAÇÃO DAS RELAÇÕES PATRIMONIAIS
DE FORMA SIMILAR À COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. POSSIBILIDADE. (STJ - REsp:
1459597 SC 2014/0140561-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de
Julgamento: 01/12/2016, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/12/2016
JC vol. 134 p. 63 JC vol. 133 p. 67)
[10] Art. 3º Os conviventes
poderão, por meio de contrato escrito, regular seus direitos e deveres,
observados os preceitos desta Lei, as normas de ordem pública atinentes ao
casamento, os bons costumes e os princípios gerais de direito. Art. 4º Para ter
eficácia contra terceiros, o contrato referido no artigo anterior deverá ser
registrado no Cartório de Registro Civil de residência de qualquer dos
contratantes, efetuando-se, se for o caso, comunicação ao Cartório de Registro
de Imóveis, para averbação.
[11] Art. 1º, parágrafo 3º,
Provimento 35, CNJ.
[12] Kümpel, Vitor Frederico.
Quebra de paradigmas: a força de escritura pública do termo declaratório de
união estável. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/386074/a-forca-de-escritura-publica-do
termo-declaratorio-de-uniao-estavel
[13] Art. 1º-A, parágrafo 1º,
Provimento 141, CNJ
[14] Art. 1º, parágrafo 1º,
Provimento 37, Conselho Nacional de Justiça.
[15] GENTIL, Alberto. Registros
Públicos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, p. 249
[16] Kümpel, Vitor Frederico.
Quebra de paradigmas: a força de escritura pública do termo declaratório de
união estável. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/386074/a-forca-de-escritura-publica-do
termo-declaratorio-de-uniao-estavel
[17] Idem.
[18] O dispositivo permite a
averbação de alterações do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de
outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou
nas pessoas nele interessadas.
[19] Tabelionato de Notas.
Coord. Isaías Gomes Ferro Júnior, Márcia Rosália Schwarzer. Salvador. Editora
Juspodivm, 2019: De Alencar. Liliane Oliveira Gherard de Alencar. P. 352
[20] CGJSP - Processo 118.884,
disponível em: http://kollsys.org/krc
[21] Idem
[22] Capítulo XX, Item 83 do
Código de Normas da CGJ/SP
[23] ROSA, Conrado Paulino da.
Direito de Família Contemporâneo. 8ª ed. ver., ampl. E atual. São Paulo:
JusPodivm, 2021, p. 129.
Fellipe Duarte é advogado. Pós-graduado em Direito Ambiental (UFPR) e em
Advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial (UNISC). Presidente da
Comissão de Direito Notarial e Registral da OAB/MG de Juiz de Fora. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM), da Academia Nacional de
Direito Notarial e Registral (AD NOTARE) e da Comissão Nacional de
Regularização Fundiária (CRF). Co-autor da obra "O Direito Notarial e
Registral em Artigos, volume IV" da YK Editora.
Fonte: Migalhas