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24 de Junho de 2021

Mudança de nome e sexo em Cartório completa três anos e traz dignidade à população LGBTQIA+

Provimento nº 73 do CNJ já beneficiou mais de 4 mil pessoas em todo o País em procedimento simplificado nas unidades de Registro Civil
 
No dia 28 de junho de 2018 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou, por meio do Provimento nº 73, a alteração de prenome e gênero de pessoas transexuais diretamente nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais. A escolha da data não foi à toa, já que é o dia em que se comemora o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, data que marca a Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969, na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, quando membros da comunidade se organizaram exigindo melhores condições de tratamento por parte da sociedade.
 
Apesar de ter sido uma conquista para todos os membros da comunidade LGBTQIA+, a quarta inicial do termo foi a principal beneficiada pelo Provimento da CNJ. De acordo com o dicionário Michaelis, a palavra transgênero significa “pessoa cuja identidade de gênero é oposta àquela do nascimento e que age como se pertencesse ao sexo oposto”. Transgênero é antônimo de cisgênero, pessoas estas que se identificam com o sexo de nascimento.
 
A partir do Provimento, pessoas trangêneros tiveram a possibilidade de alterar prenome e gênero em seus registros de nascimento e casamento. Para Carolina Parisotto, mulher trans e advogada, “A importância dessa normativa é imensa, principalmente para as pessoas trans, que de toda a comunidade LGBTQIA+ é o grupo que mais apresenta essa demanda específica da correção do registro civil”. Parisotto ainda comenta que “ter o nome e o gênero devidamente registrados em documentos oficiais como a certidão de nascimento e a carteira de identidade significa muitas coisas ao mesmo tempo, a começar pelo reconhecimento simbólico de nossa existência”.
 
São Paulo é o estado que mais se realiza alterações de gênero em cartórios de RCPN, de acordo com dados da Plataforma ALICE, portal gerido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) com informações da base estatística da atividade do Registro Civil em âmbito nacional. Segundo a plataforma, São Paulo realizou 1.314 retificações de gênero feminino para masculino, e 1.533 de masculino para feminino. São praticamente 758% a mais de alterações do que as realizadas pelo segundo estado da posição, Minas Gerais, que realizou 139 retificações de sexo feminino para masculino e 193 de masculino para feminino.
 
Entre as beneficiadas pela norma está Alexya Reis, mulher transgênera de 24 anos e moradora da Casa Florescer, um centro de acolhimento para mulheres transgêneras e travestis administrada pela Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (CROPH), em parceria com as Secretarias Municipais de Assistência e Desenvolvimento Social e de Direitos Humanos.
Alexya Reis 
Com sua certidão de nascimento retificada há um mês, Alexya diz ainda ser difícil de acreditar. “É muito gratificante, estou muito feliz, às vezes ainda nem acredito que consegui, porque quando nos descobrimos pessoa trans, queremos deixar para trás aquela bagagem daquele corpo que não nos identificamos”, comenta.
 
Para realizar a retificação, Alexya contou com o apoio da Casa Florescer, que produz cursos de instrução para suas moradoras que tenham interesse em alterar gênero em cartórios de Registro Civil. “Aprendi todo o procedimento da alteração através de um curso de suporte que eu fiz pela Casa, em que eles ensinavam como realizar a retificação, e consegui fazer a alteração no meu registro”, explicou Reis.
 
“Peguei todos os documentos na internet, no total são uns 10 comprovantes, levei ao cartório, e dei entrada para solicitar a alteração. Fui em um dia e eles disseram que após sete dias já estaria pronto o registro, e num primeiro momento, não acreditei”, explicou Alexya. “Quando cheguei ao cartório na outra semana, já estava lá meu documento. Até agora, quando o olho, com meu verdadeiro nome e sexo feminino, não consigo acreditar. Passamos por tanta coisa ruim que às vezes nem acreditamos que merecemos também”.
 
Registro Civil
 
Eliana Lorenzato Marconi, oficial titular do Cartório de Registro Civil de Guariba e diretora regional em Ribeirão Preto da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen/SP), já presenciou muitas retificações em sua serventia. E conta que a posição neste momento do oficial de Registro Civil, do funcionário e do colaborador, “é de acolher”.
 
“Quando essa pessoa que quer alterar o gênero chega ao cartório, ela já recebeu vários ‘nãos’, e teve que superar muitos desafios, porque, infelizmente, ainda há muita discriminação e preconceito”, explica Marconi. “E quando ela chega ao Cartório de Registro Civil, em que ela pode fazer esse procedimento de alteração de gênero sem qualquer burocracia, saindo com uma certidão de nascimento com o gênero que ela se autoidentifica, é uma grande conquista”.
 
Para realizar a retificação, alguns documentos são necessários a fim de dar garantia e sequencia à solicitação, Eliana salienta, ainda, que o requerente pode comparecer perante qualquer cartório de Registro Civil, “visto que há a interligação das serventias pela Central do Registro Civil (CRC)”. Ele deverá apresentar a documentação obrigatória, exigida pelo provimento, e após alguns dias o solicitante já poderá retornar ao cartório para receber sua certidão de nascimento retificada, com seu prenome e/ou gênero alterados.
 
A oficial explica que para as retificações de certidão de casamento, um outro passo deve ser realizado pelo solicitante: “é necessário a anuência do outro cônjuge”. E uma situação que pode ocorrer neste caso é o outro cônjuge não anuir, e para isso, o solicitante precisará de suprimento de anuência pelo juiz competente.
 
Eliana comenta que nestes casos há o direito dos dois indivíduos, o “direito do interessado, daquele que está alterando o seu gênero, e o direito do outro cônjuge, que talvez possa se sentir constrangido por motivos íntimos, familiares ou profissionais”. Mas Marconi salienta que nestas situações, “o direito do interessado, daquele que quer alterar o gênero, de ter os seus documentos em conformidade com o que ele se identifica, é o direito que deve prevalecer”.
 
Outra imposição do Provimento é o fato de ser um procedimento de natureza sigilosa, em decorrência de se tratar de situação sensível ao solicitante. “O sigilo vai estar inclusive na certidão emitida, uma vez que não vai constar a retificação, o corpo da averbação não vai constar na certidão, e nem terá nenhuma referência à alteração de gênero”, explica a oficial.
 
Marconi também orienta para que seja realizado uma instrução aos funcionários do cartório: “como envolve esse sigilo e uma situação muito sensível, devemos orientar os colaboradores a buscar o acolhimento dessa pessoa que chega ao balcão. Ela deve ser tratada com urbanidade como todos os outros usuários do cartório, mas temos que ter um olhar específico”, conclui.
 
A advogada Carolina Parisotto comenta que por meio do provimento, um passo já foi dado, visto que há três anos pessoas transgêneras ainda não eram possibilitadas de se reconhecerem com seu verdadeiro gênero. “A normativa do CNJ, nesse sentido, é um sopro de vida que chega num pântano de dor e de sofrimento que até então só se expandiu, sendo palco para as maiores atrocidades contra as pessoas trans”, disse.

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