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Mudança em registros civis permite etnia como sobrenome indígena; entenda os avanços
Uma alteração na Resolução Conjunta 3/2012, do Conselho
Nacional de Justiça – CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP,
que regulamenta o registro civil de indígenas nos cartórios brasileiros,
garante a inserção do nome da etnia como sobrenome nos documentos.
A atualização do ato normativo havia sido aprovada em
dezembro também pelo CNJ, órgão responsável por disciplinar a atuação dos
cartórios. A participação do CNMP decorre da atribuição do Ministério Público
de proteger o interesse dos povos tradicionais, conforme determina a
Constituição.
Após o referendo dos conselheiros do Ministério Público, a
Resolução Conjunta 12/2024 foi assinada pelos presidentes do CNJ, Luís Roberto
Barroso, e do CNMP, o procurador-geral da República, Paulo Gonet.
Com a mudança, as pessoas indígenas também podem registrar a
naturalidade como sendo da aldeia ou do território onde nasceu, ao lado do
respectivo município onde a localidade está situada.
Os novos registros poderão ser lavrados ainda em língua
nativa, se assim for solicitado. Caso haja dúvida a respeito de grafias, o
registrador poderá consultar duas pessoas que tenham domínio da língua em
questão.
Outras mudanças incluem a extinção do uso dos termos
“integrado” e “não integrado”, que ainda apareciam nas certidões de nascimento
de pessoas indígenas. O entendimento dos conselheiros do CNJ é de que os termos
não são compatíveis com a Constituição de 1988, segundo a qual não pode haver
nenhuma condição que afete a capacidade civil plena dos indígenas.
Do mesmo modo, também foi extinta a exigência de
apresentação do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena – Rani,
emitido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai. Pela resolução
anterior, agora revogada, o registrador civil poderia recusar o registro caso o
documento não fosse apresentado.
Com a medida, espera-se que aumente o número de registros
tardios de pessoas naturais, atraindo indígenas adultos sem nenhuma
documentação para que obtenham a própria certidão de nascimento e passem a ter
acesso a diversos serviços públicos.
Ainda conforme o CNMP, se duvidar que a pessoa é de fato
indígena, ao fazer o registro tardio, o registrador poderá exigir, entre
outros, cumulada ou isoladamente: declaração de pertencimento à comunidade
indígena, assinada por, pelo menos, três integrantes indígenas da respectiva
etnia; informação de instituições representativas ou órgãos públicos que atuem
e tenham atribuição de atuação nos territórios onde o interessado nasceu ou
residiu, onde seu povo, grupo, clã ou família indígena de origem esteja situado
e onde esteja sendo atendido pelo serviço de saúde.
Cidadania
A registradora Márcia Fidelis Lima, presidente da Comissão
Nacional de Registros Públicos do Instituto Brasileiro de Direito de Família –
IBDFAM entende que a alteração garante a dignidade e o exercício igualitário da
cidadania, pois reconhece e publiciza a identidade cultural dos povos
originários.
“A regulamentação e a flexibilização de regras para que as
pessoas possam se identificar da forma como se autopercebem é fundamental para
a inclusão social e cultural das diversidades que compõem a nossa nação.
A alteração normativa permite que o nome do povo indígena seja incluído como
sobrenome no registro civil de nascimento, além de possibilitar a inclusão de
informações sobre a aldeia ou território de origem e a declaração de
pertencimento à comunidade indígena”, ressalta.
De acordo com a especialista, a nova redação da norma
fortalece o direito à autodeterminação dos povos indígenas, reconhecendo a
importância da sua ancestralidade e identidade cultural na formação da sua
cidadania. “A inclusão da etnia como sobrenome e de outras informações
culturais nos documentos, além de facilitar o acesso a serviços públicos, tem
um impacto profundo na autoimagem da pessoa indígena.”
Ela explica: “Afinal, ver sua identidade étnica reconhecida
e validada em seus documentos oficiais é um passo crucial para a afirmação da
sua individualidade e do seu pertencimento a um grupo cultural”.
Cultura
A medida, segundo Márcia Fidelis, também contribui para
fortalecer a autoestima e o sentimento de orgulho da pessoa indígena, além de
promover a valorização da sua cultura e história.
“Ademais, com a possibilidade de expressar sua identidade
étnica de forma mais completa nos documentos oficiais, as pessoas indígenas
podem ter maior facilidade no acesso a serviços de saúde, educação e
assistência social, que muitas vezes precisam ser direcionados para essa
população. Além disso, pode contribuir para a implementação de políticas
públicas mais eficazes, que levem em conta as necessidades específicas de cada
povo indígena”, complementa.
Com a nova alteração, a registradora esclarece que a pessoa
indígena, ao apresentar os documentos em uma unidade de saúde, por exemplo,
pode ser mais facilmente identificada como pertencente a um grupo que pode ter
necessidades específicas de saúde, como a maior prevalência de certas doenças
ou a necessidade de tratamentos diferenciados que levem em conta seus
conhecimentos tradicionais.
“Da mesma forma, na educação, a inclusão da etnia nos
documentos pode facilitar o acesso a programas de ensino específicos para
indígenas, que valorizem suas línguas, culturas e conhecimentos tradicionais.
Ao reconhecer e respeitar a diversidade cultural dos povos indígenas, o Estado
brasileiro garante o exercício pleno da cidadania e promove a justiça social”,
destaca.
Márcia Fidelis vê a representatividade nos documentos como
“um passo importante para a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária, na qual todos se sintam reconhecidos e valorizados em suas
identidades”.
Procedimentos
Segundo a registradora, o procedimento para solicitar a
inclusão da etnia no registro civil de indígenas em cartório é relativamente
simples. “Se ainda não for registrado o nascimento, é possível que o texto do
registro já considere essas novas disposições, podendo o declarante fornecer os
dados da etnia da pessoa a ser registrada, tanto para compor seu sobrenome como
para identificar a sua naturalidade e as naturalidades de seus ascendentes.”
“Também é possível constar, como observações acrescidas ao
registro, a declaração de que é pessoa indígena, a origem de seu povo e de seus
ascendentes, seu grupo, seu clã ou família indígena, a depender de seus
costumes locais. Além disso, pessoa indígena maior e capaz, já registrada no
Registro Civil das Pessoas Naturais, poderá solicitar diretamente no cartório
de registro civil de sua escolha, essas novas disposições, de forma
simplificada e célere, sem intervenção judicial”, detalha.
Sobre a extinção dos termos “integrado” e “não integrado” da
Resolução Conjunta CNJ/CNMP 3/2012, Márcia Fidelis vê a medida como um passo
importante para o reconhecimento pleno da cidadania indígena, “pois elimina
classificações discriminatórias e estigmatizantes de que existem indígenas
‘mais’ ou ‘menos’ indígenas”
“Ao reconhecer a diversidade dos povos indígenas e seus
diferentes modos de vida, a nova resolução promove a igualdade e a inclusão
social, garantindo a todos os indígenas o mesmo respeito e dignidade”, comenta.
Alterações
Para os cartórios, a registradora Márcia Fidelis Lima aponta
possíveis desafios para a implementação das mudanças. Entre eles, a necessidade
de capacitação dos servidores para lidar com as especificidades da cultura e
dos idiomas indígenas, a adaptação dos sistemas informatizados para incluir as
novas informações e a garantia de acesso aos serviços para indígenas em
situação de vulnerabilidade.
No entanto, ela destaca: “Os desafios podem ser superados
com o apoio dos órgãos competentes e a colaboração das comunidades indígenas,
garantindo a efetivação dos direitos e o reconhecimento da identidade e cultura
dos povos indígenas”.
Fonte: IBDFAM