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Orgulho, dignidade e cidadania: o papel dos Cartórios na garantia de direitos da população LGBT+
Sete anos depois do Provimento nº 73, os Cartórios seguem
sendo espaços onde a identidade encontra
Este ano, o Dia Internacional do Orgulho LGBT+ ganha ainda
mais relevância ao marcar os sete anos da edição do Provimento nº 73/2018 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este marco regulatório transformou um
caminho de luta em um direito acessível, permitindo a retificação de prenome e
gênero diretamente nos Cartórios de Registro Civil, sem a necessidade de longos
processos judiciais ou laudos médicos patologizantes.
Enquanto o Poder Judiciário firma os princípios da
igualdade, é na capilaridade dos quase 8 mil Cartórios de Registro Civil em
todo o Brasil que esses direitos ganham forma concreta. Um exemplo disso é o
número expressivo de mudanças de nome e gênero realizadas em Cartórios desde
junho de 2018: mais de 16 mil atos e só em 2023 foram 4 mil procedimentos de
retificação de nome e gênero realizados em todo o país. Mais que números, esses
dados simbolizam vidas reescritas com respeito, a eficácia da política pública
e a confiança crescente da população LGBT+ nos serviços extrajudiciais como
agentes fundamentais de cidadania.
Da luta nos tribunais à conquista no balcão: a gênese de
um direito fundamental
A desburocratização da retificação de nome e gênero não
surgiu de forma espontânea. Ela é o resultado de uma longa evolução
jurisprudencial que transferiu o poder de decisão da esfera médica e judicial
para a autonomia do indivíduo, encontrando nos Cartórios o seu ponto de
materialização.
Antes de 2018, o caminho para uma pessoa transgênero alinhar
seus documentos à sua identidade de gênero era uma verdadeira via crúcis. O
processo era invariavelmente judicial, caracterizado por sua lentidão, altos
custos e, acima de tudo, por uma abordagem invasiva e degradante. Era comum a
exigência de laudos médicos, avaliações psicológicas e até a comprovação de
cirurgias de redesignação sexual.
A advogada Maria Eduarda Aguiar recorda que não havia
padronização nas decisões judiciais, o que gerava um cenário de profunda
insegurança jurídica. Alguns juízes autorizavam a retificação completa, outros
apenas a do nome, e havia ainda aqueles que exigiam perícias psiquiátricas para
“comprovar” a identidade trans. Esse sistema, além de humilhante, era
excludente e inacessível para a maioria.
A virada jurisprudencial: o STF e o reconhecimento da
autodeclaração
O ponto de virada começou a ser desenhado no Superior
Tribunal de Justiça (STJ) e consolidou-se no Supremo Tribunal Federal (STF). Em
decisões históricas, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275 e
o Recurso Extraordinário (RE) 670.422, a mais alta corte do país estabeleceu
uma tese revolucionária: o direito à identidade de gênero é um direito
fundamental e subjetivo, baseado na autodeclaração do indivíduo.
Influenciado por tratados internacionais de direitos
humanos, como o Pacto de San José da Costa Rica, e pela Opinião Consultiva
24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o STF determinou que a
alteração de prenome e gênero independe de cirurgia de redesignação ou de
terapias hormonais, que não se exige nada além da manifestação de vontade do
indivíduo e que o procedimento pode ser realizado tanto pela via judicial
quanto diretamente pela via administrativa.
Essa mudança foi paradigmática, pois transferiu o locus de
autoridade de um terceiro (médico ou juiz) para a própria pessoa, reconhecendo
sua autonomia e dignidade.
O Provimento nº 73/2018: A tradução da justiça em
procedimento
Com os princípios firmados pelo STF, coube ao Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), sob a liderança do então corregedor Nacional de
Justiça, ministro João Otávio de Noronha, a tarefa de criar a ponte entre a
decisão da corte e a prática cotidiana. Em 28 de junho de 2018, foi editado o
Provimento nº 73, que regulamentou o procedimento extrajudicial nos Cartórios
de Registro Civil.
A norma estabeleceu regras claras e objetivas: toda pessoa
maior de 18 anos pode requerer a alteração diretamente no Cartório,
apresentando uma lista definida de documentos e, crucialmente, sem a
necessidade de autorização judicial ou laudos de qualquer natureza. O
provimento também garantiu o sigilo do procedimento, determinando que a origem
da alteração não deve constar nas certidões emitidas, protegendo a privacidade
do cidadão.
“A decisão do STF, em 2018, foi extremamente humana porque
deu às pessoas o poder de se autodeterminar. Não é mais um juiz que diz quem a
pessoa é. É uma vitória”, avalia a defensora pública Emmanuela Saboya,
especialista em retificação de nome e gênero no Distrito Federal. De fato,
antes desse marco legal, o caminho para reconhecimento era longo e penoso:
demandava ingressar com duas ações judiciais distintas (uma na Vara de Família
e outra na Vara de Registros Públicos), além de apresentar laudos médicos e
psiquiátricos que “comprovassem” a transexualidade. Muitas pessoas trans e
travestis enfrentavam anos de batalha judicial para obter uma sentença que
autorizasse a mudança, isso quando tinham acesso a advogado ou
Defensoria.
O Provimento nº 73/2018 mudou radicalmente esse cenário,
estabelecendo um procedimento administrativo simples, padronizado e válido em
todos os Cartórios do Brasil. Entrou em vigor imediatamente após sua
publicação, em junho de 2018, e desde então vem sendo aplicado sob supervisão
das corregedorias de justiça. Para menores de 18 anos, a via judicial ainda é
necessária (com representação dos pais ou responsáveis), mas para os adultos
trans o direito à retificação extrajudicial tornou-se realidade acessível.
“A melhor coisa que aconteceu comigo”: o impacto social e
pessoal da retificação
A importância do Provimento nº 73/2018 transcende a análise
jurídica. Seu maior impacto é medido nas vidas transformadas, na dignidade
resgatada e na cidadania finalmente exercida sem constrangimentos.
Sandra dos Santos, a primeira mulher trans a retificar seu
nome em Roraima, resume o sentimento de muitos ao afirmar que ter seus
documentos alinhados à sua identidade de gênero “foi a melhor coisa que
aconteceu” com ela. Sandra recorda os constrangimentos diários que enfrentava
em serviços básicos, como postos de saúde ou entrevistas de emprego, onde era
forçada a expor sua intimidade para justificar um nome masculino no RG. Hoje,
ela celebra a possibilidade de ter “uma vida normal”.
Por cinco anos, a carioca Biancka Fernandes buscou adequar
seus documentos à sua identidade feminina. Sem orientação e com poucos
recursos, ela peregrinou por 11 Cartórios diferentes tentando mudar nome e
gênero. Somente em 2018, com a nova norma em vigor, Biancka conseguiu a
retificação durante um mutirão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ao
receber a certidão de nascimento compatível com quem ela é, descreveu a
sensação de renascer. “Eu passei por muitas dificuldades, por isso é de extrema
importância essa mudança, nasci de novo. Tenho a esperança de não passar mais
por certas turbulências”, conta Biancka. Hoje, ela exibe com orgulho seu
documento com nome feminino, marco de sua cidadania reconhecida e proteção
contra a discriminação. Histórias como a de Biancka se repetem em todo o país,
sinalizando uma transformação social tangível proporcionada pelos Cartórios.
Outra história emblemática é a de Danilo Alves, homem trans
de Brasília identificado como do gênero feminino ao nascer. Ao atingir a
maioridade, Danilo buscou retificar seus documentos para o gênero masculino,
contando com orientação da Defensoria Pública. Graças ao procedimento
extrajudicial simplificado, ele reuniu a documentação exigida e deu entrada no
Cartório. “Me passaram a lista de documentos, entreguei tudo no Cartório onde
fui registrado e, com oito dias, já estava pronta a nova certidão”, relata Danilo.
Com a certidão retificada em mãos, ele conseguiu emitir novos documentos, como
o RG, CPF e título de eleitor condizentes com sua identidade de gênero, abrindo
caminho para exercer plenamente seus direitos, estudar e trabalhar sem
constrangimentos.
As vivências de Biancka e Danilo ilustram o efeito concreto
da mudança legal de 2018: para pessoas trans e travestis, o reconhecimento
oficial da identidade representa dignidade e alívio. Documentos adequados
eliminam a exposição ao preconceito em situações cotidianas, da matrícula
escolar ao atendimento de saúde, e fortalecem a autoestima. “Ainda me olham
diferente no ônibus para o trabalho, mas estou feliz e orgulhosa”, diz Biancka,
que teve até o apoio da mãe no processo.
O impacto pessoal é refletido de forma contundente nas
estatísticas. Desde que o procedimento foi autorizado em junho de 2018, um
total de 17.346 mudanças de nome e gênero foram realizadas em Cartórios de todo
o Brasil. Os dados, compilados pela Central de Informações do Registro Civil
(CRC Nacional) e atualizados até 30 de novembro de 2024, revelam a consolidação
e a ampla adesão a este direito.
A prática do acolhimento: a atuação dos Cartórios de
Registro Civil
A eficácia do Provimento nº 73/2018 depende fundamentalmente
da atuação dos registradores civis na ponta. A liderança das entidades de
classe e a experiência dos profissionais no dia a dia mostram um amadurecimento
institucional, que migra da mera obediência à norma para uma missão ativa de
acolhimento.
Em sintonia com esse contexto de ampliação de direitos, a
Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR) lançou a
iniciativa Cartório Plural, voltada a promover a inclusão e o respeito à
diversidade no ambiente dos Cartórios. O programa foi apresentado nacionalmente
em 2022 e reforça o compromisso do serviço extrajudicial com a igualdade de
tratamento. O objetivo central do Cartório Plural é promover práticas
inclusivas nos Cartórios de todo o país e, ao mesmo tempo, esclarecer a
população sobre os atos disponíveis nos Cartórios para garantia de direitos
individuais, promoção da diversidade e busca da igualdade.
Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI,
elogia o programa como uma “excelente iniciativa para a promoção do respeito e
empatia”, destacando a importância de um atendimento que não expresse “vieses
inconscientes” ou “preconceitos”. A advogada Lucila Lang, da Casa 1,
complementa, afirmando que a iniciativa é “bastante importante no sentido de
pensar formações e letramentos sobre a questão LGBTQIAPN+”, especialmente
diante do aumento de procedimentos extrajudiciais para essa população. O
Cartório Plural, portanto, não é apenas uma campanha, mas um passo estruturante
para garantir que o direito à dignidade, formalizado em leis e provimentos, se
traduza em um tratamento verdadeiramente respeitoso no balcão.
No balcão do Cartório: a experiência de quem faz
acontecer
Talvez nenhum relato ilustre melhor a transformação do
sistema do que o de Carla Watanabe. Como a primeira e única tabeliã trans do
Brasil, ela possui uma perspectiva dupla e poderosa. Em depoimento à CPI da
Violência Contra Pessoas Trans e Travestis na Câmara Municipal de São Paulo,
ela narrou as dificuldades que enfrentou em seu próprio processo de
retificação, incluindo a recusa de Cartórios, a burocracia e o preconceito de
funcionários.
O papel dos Cartórios na garantia de direitos da população
LGBTQIA+ se estende a outra esfera fundamental da vida civil: o casamento. A
formalização da união estável e do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo
é um serviço essencial que confere segurança jurídica e reconhecimento às
famílias. As estatísticas do IBGE mostram que, também nesse campo, os Cartórios
são protagonistas.
Em 2023, o Brasil atingiu um recorde de 13.678 casamentos
homoafetivos, mais que o triplo do número registrado em 2013, ano em que o CNJ,
por meio da Resolução nº 175, determinou que os Cartórios não poderiam se
recusar a celebrar casamentos civis ou converter uniões estáveis em casamento
entre pessoas do mesmo sexo. O crescimento contínuo, especialmente entre
mulheres, que também bateram recorde em 2023, demonstra a crescente aceitação
social e a importância dos Cartórios como o portal para a formalização desses
laços e de todos os direitos deles decorrentes.
Avanços contínuos e próximos desafios
Sete anos após o Provimento nº 73, o Brasil continua
avançando para aperfeiçoar a garantia dos direitos de pessoas LGBT+.
Recentemente, o CNJ expandiu o alcance da retificação extrajudicial para
brasileiros transgênero que vivem no exterior. Em 2023, foi editado o
Provimento nº 152/2023, permitindo que consulados e embaixadas do Brasil
recebam os pedidos de alteração de nome e gênero, sem necessidade de processo
judicial no país de origem. “Agora tornou-se possível iniciar o processo
de averbação de nome e gênero para pessoas transgênero residentes no exterior
por meio da rede consular brasileira”, explicou o Ministério das Relações
Exteriores.
Essa atualização normativa, complementar ao Provimento 73,
remove barreiras geográficas e beneficia cidadãos trans que haviam ficado
alijados do direito por estarem fora do território nacional. Sob a mesma lógica
de dignidade, o CNJ reafirmou que não se exigem laudos ou exames nesses casos,
basta a declaração de vontade do interessado, cabendo ao agente consular adotar
os mesmos cuidados de verificação já praticados pelos registradores civis.
Apesar do inegável sucesso da retificação extrajudicial, é
crucial contextualizar esse avanço dentro do cenário mais amplo e adverso dos
direitos LGBT+ no Brasil e reconhecer os desafios que ainda persistem. A
psicóloga Pietra Fraga do Prado, do Observatório de Mortes e Violências contra
LGBTI+, oferece um panorama sóbrio. O Brasil continua sendo, há 14 anos, o país
que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, com dados que ainda são
subnotificados. As mulheres trans e travestis são as vítimas mais frequentes dessa
violência brutal.
Os Cartórios como pilares da cidadania inclusiva
No balanço desses sete anos, o que se celebra é mais que um
provimento normativo, é uma mudança de paradigma. Os Cartórios de Registro
Civil tornaram-se grandes aliados na promoção dos direitos LGBT+, ao
operacionalizar conquistas legais de forma capilar e humanizada. Cada prenome
adequadamente registrado, cada casamento homoafetivo lavrado, representa um
cidadão cuja existência é legitimada pelos livros oficiais.
O direito ao nome e à identidade de gênero é, em essência, o
direito a ser tratado com respeito. A experiência brasileira pós-2018 mostra
que quando as instituições removem obstáculos desnecessários e atuam com
empatia, a resposta da sociedade é positiva. Biancka, agora com sua carteira de
identidade feminina, planeja retomar os estudos e sente que “a vida voltou a
andar no rumo certo”. Danilo, com seu nome masculino reconhecido, relata que as
relações de trabalho melhoraram e que ele se sente mais confiante para “seguir
em frente”.
No âmbito institucional, os Cartórios brasileiros reafirmam
diariamente sua vocação de servir ao público com excelência técnica e
sensibilidade humana. Sob a égide do Provimento nº 73/2018, milhares de
registros foram adequados, levando esperança à população trans e travesti. A
cada assinatura em livro, um profissional do Cartório chancela não apenas uma
alteração registral, mas um ato de cidadania.
Fonte: ANOREG/BR