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Retrospectiva STJ 2025: Bem de família, gênero neutro e herança digital entre os destaques no direito privado
No campo do direito
privado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou, ao longo de 2025, uma
grande variedade de temas sensíveis, como o direito ao gênero neutro no
registro civil, os limites da chamada "herança digital" e a dispensa
de cobertura, pelos planos de saúde, para o uso domiciliar do canabidiol.
Outras decisões de muita
repercussão envolveram adoção póstuma, transporte de animais em aeronaves e até
a suspensão de um jogador profissional de Free Fire, o que ilustra a amplitude
e a atualidade da pauta de julgamentos da corte. Dos sete temas julgados sob a
sistemática dos recursos repetitivos, evidenciam-se as teses sobre
impenhorabilidade do bem de família fixadas pela Segunda Seção.
Multa para pais que não
vacinam os filhos e reconhecimento de adoção póstuma
Nos julgamentos
envolvendo família, destacaram-se o princípio do melhor interesse do menor e os
vínculos socioafetivos entre pais e filhos. Em março, a Terceira Turma
estabeleceu que estão
sujeitos a multa de três a 20 salários mínimos os pais que não vacinarem seus
filhos contra a Covid-19. A relatora, ministra Nancy
Andrighi, lembrou que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura de
forma ampla o direito à saúde e estipula que a vacinação é obrigatória sempre
que houver recomendação das autoridades sanitárias.
Nesse contexto, a
ministra entendeu configurada a negligência de pais que se recusaram a vacinar
a filha, e constatou, ainda, o abuso do poder familiar, uma vez que tal conduta
viola o princípio da paternidade responsável e contraria o melhor interesse da
criança.
Em agosto, ao validar a
adoção de criança em favor de um casal, o colegiado decidiu que é
possível o reconhecimento incidental de união estável na ação de adoção.
A pretensão dos adotantes (um dos quais morreu quando o processo estava em
curso) foi questionada porque não teria sido comprovada a união estável do
casal e também por ter havido burla ao Cadastro Nacional de Adoção.
O ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva afirmou que, embora a ação de reconhecimento da união estável ainda
estivesse pendente de julgamento, esse reconhecimento seria possível de forma
incidental, apenas para fins da ação de adoção. O relator disse ainda que,
apesar do desrespeito ao cadastro, a retirada da criança após mais de 13 anos
de convivência com aquela família lhe causaria enorme prejuízo.
“A ofensa ao procedimento
ordinário de adoção representa violação de menor significância quando
considerado o princípio do melhor interesse da criança”, Ministro Ricardo
Villas Bôas Cueva.
Retificação de registro
após DNA negativo depende da inexistência de vínculo socioafetivo
Em outro julgado
importante sobre família, a Terceira Turma levou em consideração as relações
socioafetivas para negar
o pedido de um homem que, após realizar exame de DNA e descobrir que não era o
pai biológico de um adolescente, solicitou a retirada de seu nome do registro
civil do filho. O colegiado concluiu que, apesar da
ocorrência de vício de consentimento – pois o homem registrou a paternidade por
acreditar haver vínculo biológico com a criança –, a retificação era inviável
diante da prova do vínculo afetivo entre as partes.
"A divergência entre
a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por
si só, para anular o registro", destacou a relatora, ministra Nancy
Andrighi.
Renúncia a bens da
herança e herança digital entraram na pauta
Em maio, a Terceira
Turma decidiu que, dado o seu caráter indivisível e irrevogável, a renúncia
à herança também abarca bens descobertos posteriormente.
Para o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o renunciante perde os seus
direitos hereditários de forma retroativa e definitiva, abrindo mão da
totalidade dos bens já transferidos: "Perfeita a renúncia, é como se nunca
tivesse sido herdeiro, não sendo, pois, beneficiário do direito
sucessório".
No mês de setembro, o
colegiado entendeu que o
acesso à herança digital protegida por senha exige incidente processual próprio,
que respeite os direitos de personalidade do autor da herança. O caso chegou ao
STJ depois que uma inventariante tentou acessar, por meio de ofício à
Apple, o conteúdo de aparelhos eletrônicos deixados pelo falecido.
A ministra Nancy Andrighi
ressaltou que o direito sucessório deve garantir que a impossibilidade de
acesso aos bens digitais, devido à falta de senhas compartilhadas com os
herdeiros, não prejudique a transmissão do patrimônio. No entanto, ela observou
que nem todos os bens digitais são transmissíveis; aqueles que possam violar
direitos de personalidade, como a intimidade e a vida privada do falecido ou de
terceiros, devem ser preservados.
Novas teses sobre a
impenhorabilidade do bem de família
Novos entendimentos sobre
a proteção legal do bem de família também marcaram o
primeiro semestre do tribunal. A Quarta Turma adotou a tese de que o
único imóvel residencial do espólio, ocupado por herdeiros do falecido,
continua protegido como bem de família e, por isso, não
pode ser penhorado para garantir dívida deixada pelo autor da herança. Para o
colegiado, a transmissão hereditária, por si só, não tem o efeito de afastar a
natureza do bem de família, se mantidas as características de imóvel residencial
próprio da entidade familiar.
De acordo com o ministro
Antonio Carlos Ferreira, relator do recurso, os herdeiros respondem pelas
dívidas do falecido dentro dos limites de suas partes na herança, mas isso não
afasta a proteção do bem de família.
“Se os herdeiros se
sub-rogam na posição jurídica do falecido, naturalmente também recebem as
proteções legais que amparavam o autor da herança, entre elas a
impenhorabilidade do bem de família”, Ministro Antonio Carlos Ferreira.
A temática também esteve
presente na pauta da Segunda Seção, que, sob
o rito dos recursos repetitivos, fixou duas novas teses ao
julgar o Tema
1.261. Na primeira, ficou definido que a exceção à
impenhorabilidade do bem de família, nos casos de execução de hipoteca sobre o
imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade família,
restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em benefício da
entidade familiar.
A segunda tese
estabeleceu que, em relação ao ônus da prova: a) se o bem foi dado em garantia
real por um dos sócios da pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo
ao credor o ônus de comprovar que o débito da sociedade se reverteu em
benefício da família; e b) caso os únicos sócios da pessoa jurídica sejam os
titulares do imóvel hipotecado, a regra é a penhorabilidade do bem de família,
competindo aos proprietários demonstrar que o débito da sociedade não se
reverteu em benefício da família.
De acordo com o ministro
Antonio Carlos Ferreira, o devedor que tenta excluir o bem da execução da
dívida, após dá-lo como garantia, apresenta comportamento contraditório
incompatível com o princípio da boa-fé. "Admitir que a defesa seja oposta
em toda e qualquer situação implicaria o esvaziamento da própria garantia que
constituiu o fundamento que conferia segurança jurídica e suporte econômico à
contratação posterior", esclareceu o relator.
Vendedor de imóvel pode
responder por obrigações posteriores à posse do comprador
Ainda no âmbito da
Segunda Seção, em abril, o STJ confirmou a legitimidade
passiva concorrente entre vendedor e comprador em ações de cobrança de taxas de
condomínio referentes ao período posterior à imissão
na posse do imóvel pelo comprador, quando o contrato de compra e venda não
foi registrado em cartório. Com esse entendimento, o colegiado adotou no Tema
886 teses
compatíveis com o caráter propter rem da dívida condominial.
A ministra Isabel
Gallotti, relatora, observou que o condomínio – credor de obrigação propter
rem – não pode ficar sujeito à livre estipulação contratual de
terceiros: "A obrigação propter rem nasce com a
titularidade do direito real, não sendo passível de extinção por ato de vontade
das partes eventualmente contratantes, pois a fonte da obrigação é o próprio
direito real sobre a coisa".
Direito real de habitação
pode ser estendido em favor de filho incapaz
Considerando que a
proteção das vulnerabilidade é uma premissa do direito privado atual, a
Terceira Turma decidiu, em outubro, que o
direito real de habitação, assegurado por lei ao cônjuge ou companheiro
sobrevivente, pode ser estendido a filho incapaz.
"Deve-se permitir a
ampliação do direito real de habitação em benefício do herdeiro com
vulnerabilidade, a fim de garantir-lhe o direito social à moradia,
privilegiando-se sua proteção e dignidade", afirmou a relatora, ministra
Nancy Andrighi, para quem, em caso de eventual conflito entre o direito de
propriedade dos herdeiros capazes e o direito de moradia do herdeiro incapaz,
deve prevalecer o segundo.
Garantido o direito ao
gênero neutro no registro civil
Em outro julgamento de
bastante repercussão, a Terceira Turma confirmou, em maio, o compromisso do
tribunal com a diversidade ao considerar que é
possível retificar o registro civil para fazer constar o gênero neutro.
Naquela oportunidade, o colegiado entendeu que o direito à autodeterminação de
gênero e à identidade sexual está intimamente relacionado ao livre
desenvolvimento da personalidade.
A ministra Nancy Andrighi
destacou que, apesar de não existir legislação específica sobre o tema, não há
razão jurídica para a distinção entre pessoas transgênero binárias – que já
possuem o direito à alteração do registro civil, de masculino para feminino ou
vice-versa – e não binárias, devendo prevalecer no registro a identidade
autopercebida pelo indivíduo.
"Seria incongruente
admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de transgeneridade binária e
não binária, uma vez que em ambas as experiências há dissonância com o gênero
que foi atribuído no nascimento, devendo prevalecer a identidade autopercebida,
como reflexo da autonomia privada e expressão máxima da dignidade humana",
refletiu a ministra.
“Todos que têm gênero não
binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito
e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei”, Ministra
Nancy Andrighi.
Fonte: STJ